Palavras chave: Imagens endógenas e imagens exógenas- Iconofagia.
O que a língua latina chamava de imago referia-se ao retrato de um morto. Porque as imagens são indeléveis, porque conferem uma segunda existência, elas possuem um status semiótico na segunda realidade (cf. Bystrina,1989), em seu caso particular, a presença de uma ausência e seu oposto, a ausência de uma presença. Por isso elas são fantasmagóricas, em sua origem mais remota.2 Além disso, as imagens não são, distintamente do que às vezes somos tentados a pensar, subprodutos da luz, formas de luz ou seres do dia. São muito mais, em sua origem e desde então, habitantes da noite, possuem muito mais faces invisíveis do que aquelas que se deixam ver, mantém estreitos laços históricos com o sombrio e com o insondável, com as zonas profundas de nós mesmos, com as quais tememos ter contato.
Imagens, em um sentido mais amplo, podem ser configurações de distinta natureza, em diferentes linguagens: acústicas, olfativas, gustativas, táteis, proprioceptivas ou visuais. Portanto, neste sentido, já a maioria delas é invisível e pode apenas ser percebida por seus vestígios ou pelos outros sentidos que não a visão. Além do mais, aquelas que são visíveis possuem também ao menos algumas facetas e aspectos invisíveis aos nossos olhos. Isto quer dizer que ao lado ou atrás da visibilidade de uma imagem emergem numerosas configurações que a acompanham e que nossos olhos não conseguem ver. E, mais que isso, os procedimentos dessas configurações invisíveis são imprevisíveis, pois elas se alimentam das camadas, da história e das histórias, soterradas do homem, se enraízam nas profundezas invisíveis do esquecimento. E, uma vez que cada pessoa vive as histórias próprias e alheias de maneira distinta, as sombras que acompanham as imagens podem apenas ser intuídas e penetradas como campos de probabilidades, um espaço comunicativo de improvável determinação, às vezes mesmo impossível de se determinar.
Uma ciência que investiga as imagens e uma prática que as pretende utilizar fracassará se não se construir sobre alicerces históricos e culturais, se permanecer apenas na superfície das tipologias e nas classificações morfológicas. E principalmente estará fadada ao insucesso se projetar e executar processos de comunicação sócio-cultural de maneira determinística, sem considerar as facetas sombrias e silenciosas das histórias, das pessoas e das coisas que servem de ponto de partida (e de chegada) na vida das imagens.
Mas também devemos considerar sobretudo uma vontade própria das imagens (e não apenas, mas também, evidentemente, de seus suportes materiais), pois há muito as imagens declararam sua independência do mundo da vida e das coisas, há muito fundaram um mundo próprio, o mundo das imagens. E tentam nos seduzir a nos transferirmos para lá. Sua sedução conta, além disso, com um poderoso aliado, a extenuação dos nossos olhos diante de seu insistente apelo. E o "padecimento dos olhos" (assim o formulou Dietmar Kamper, 1997) em busca de camadas mais profundas, torna-se facilmente a primeira vitória das superfícies impenetráveis das imagens que sonegam as histórias, substituindo-as por mais imagens, mais superfícies ao invés de profundidades e desdobramentos.
Primeiramente, supomos, nas cavernas da pré-história da percepção humana, lá onde não penetram o dia, a luz e nossos olhos. Nascem então no espaço e nas cavernas do sonho e no igualmente denso e obscuro sonho diurno, no devaneio, na caverna da força da imaginação que oferece um oásis de escuridão em meio à luz do dia. Depois elas nascem no mundo da palavra que conta da origem do mundo, das coisas e da vida, que conta de seus heróis e de seus feitos. Mais tardiamente, muito mais tarde é que elas começam a nascer no interior das cavernas, nas quais - como no interior da escuridão do cérebro pensante - estão resguardadas dos raios destrutivos do sol e da luz - como dos da razão. E, como elas nasceram no interior, seu movimento natural deveria representar um vetor de recordação, de interiorização ao invés de uma permanente fuga para fora, uma condenação à exterioridade, um eterno apelo para os olhos nus.
Por este motivo, as categorias de 'imagens endógenas e imagens exógenas, propostas por Hans Belting (2001), é tão interessante e operativa. Elas possibilitam a verificação do vetor de uma imagem e seu efeito sobre a comunicação social. E permitem um tipo de 'análise de impacto sobre o meio-ambiente' comunicacional, possibilitam um diagnóstico do potencial dialógico das imagens como força imaginativa, quando seus vetores dominantes conduzem à interiorização, ou como força desvinculadora, dissociativa e auto-referente, quando seus vetores são de mera exterioridade, remetendo apenas a mais imagens exógenas e cerceando o movimento interiorizante de associação com as profundezas das imagens endógenas. Assim, a verificação dos vetores exteriorizantes ou interiorizantes de uma imagem serão o parâmetro a ser observado para a compreensão de sua natureza e seu potencial dialógico. Notáveis exemplos de trabalho com imagens com expressivos vetores de interiorização não faltam na história das imagens artisticamente produzidas pelo homem, na pintura, na fotografia, no teatro, na literatura, no cinema, na arquitetura e no urbanismo, na televisão, na publicidade. Elas abriram as portas para mundos perceptivos novos, criaram novos olhares e ampliaram horizontes da cultura humana. Em contrapartida, é crescentemente assustador o processo inflacionário das imagens que fecham portas para o mundo por serem construídas a serviço do vetor de exteriorização, remetendo a uma existência 'em efígie', sem a interioridade da imaginação. Uma bela alegoria deste processo inflacionário e seus desdobramentos é apresentada pelo filme de Alexander Kluge de 1985, "O ataque do presente sobre o restante do tempo" (Der Angriff der Gegenwart auf die übrige Zeit), na verdade, um filme sobre o cinema e sua gloriosa batalha em busca das imagens endógenas, jogando com as invisibilidades do cinema e da cidade, sobre a gramática do tempo da cidade e do filme. Apresenta-se aí a temática da ofuscação pela desmesurada proliferação das imagens e o tempo acelerado gerado por sua reprodução. Aceleração e inflação inevitavelmente geram perdas.
A produção massiva de imagens dirige-se aos nossos olhos que progressivamente se transformam em receptadores de superfícies planas. Porque elas se dirigem aos nossos olhos e eles se tornam viciados em bidimensionalidades, desaparecem para eles as profundidades. Passamos a co-produzir, a partir da "imago" primordial, imagens mortas, sem interioridade e sem visceralidade, sem dimensões além da casca, sem vida interior. Por medo da morte o homem produziu imagens. E as imagens produzidas para afastar e esquecer a morte acabaram por traze-la para mais perto e por antecipá-la, acabaram por trazer sua materialidade vazia, a máscara de cera de uma imago. Segundo Dietmar Kamper, " Contra o medo da morte só temos a chance de fazer uma imagem. Por isso estão presos às imagens os desejos de imortalidade. Por isso a órbita do imaginário está ligada na eternidade. E por isso, estando vivos, sofremos o destino de já estarmos mortos." (Kamper, 1994:9).
O defrontar-se com a morte trouxe ao homem a invenção da cultura, o desenvolvimento de mundos e formas paralelos, ficcionais, conduziu-o às regras de jogos imaginativos e aos espaços e tempos do lúdico, nos quais, com os quais e para os quais este mesmo homem passou a viver, reinventando-se a si mesmo. E os seres que ele cria nesta realidade paralela recebem tal investimento de crença que passam a determinar mesmo a vida do homem. Assim, o mundo da cultura possui esta característica: criar seres que atuam sobre os criadores. A história desta atuação começa talvez, em seus primórdios, sob formas titânicas, onipotentes e sem leis (cf. Contrera,2002 e Lopez-Pedrazza, 1997). Depois sob a forma de deuses justiceiros e reparadores (Cf. Hillman, 1992). Posteriormente se expandem sob formas de instâncias políticas de dominação e dominadores de todos os tipos. Por fim, todos abriram passagem para as imagens, representações de representações, ilustrações de ilustrações, realidades cada vez mais distantes, abstratas e descarnadas de interioridades, vazias ou ocas, fantasmas de aparição súbita e efêmera, que serão sucessivamente substituídos por mais fantasmas, como uma imagem sucede a outra infinitamente, sem nunca levar a algo que não seja também uma imagem. Hans Belting expressa este processo com lapidar concisão: "hoje as imagens convidam os vivos à fuga do corpo" (Belting 2001:143)
A complexa relação das imagens com a morte merece assim uma atenção que tem sido recalcada tanto pelos meios de comunicação visuais quanto pelos estudos e reflexões sobre os mesmos. Se a motivação primeira da produção de imagens foi a tentativa de fugir da morte, esta tentativa, repetida exaustivamente só fez evocá-la, recordando-a não mais em espaços de cultos e rituais, mas em todos os espaços e tempos da vida humana. Flusser (1998) classifica esta invasividade onipresente como "a terceira grande catástrofe do homem", depois da queda do arborícola que o levou ao nomadismo e depois do assentamento do nômade que o levou à posse da terra e ao cultivo de seus frutos. Na terceira catástrofe, os espaços do aconchego, da proteção e do recolhimento ficam inabitáveis por estarem perfurados e permitirem a entrada invasiva do "furacão da mídia".
Assim, o desconforto de termos que viver sem a interioridade e o recolhimento, sem o aconchego das coisas e pessoas próximas, nos confronta permanentemente com o distante, o estranho, o desconhecido, vale dizer, o outro lado da vida, tão próximo das ameaças e da morte iminente, marca de épocas pregressas. As imagens (e aqui não apenas as imagens visuais, mas todas aquelas imagens planas ou construtoras de superfícies e superficialidades) desafiam insistentemente e reiteradamente nosso medo, pois evocam suas origens obscuras, suas raízes na noite e no insondável. E toda tentativa de trazer a imagem para o reino absoluto da luz nada mais representará que o recalque e a ocultação de seu lado sombrio. E quanto mais se ocultar sua sombra, mais se a evocará.
Em seu percurso de interiorização e exteriorização, via que deveria ser naturalmente de mão dupla, as imagens tem apenas uma chance de alcançar o status da vida: quando elas buscam nos olhos de seus espectadores a profundidade perdida. Por isso a procuram incessante e desesperadamente. E por isso buscam também obsessiva e abusivamente pelos olhos humanos. Já não são os olhos que buscam as imagens, como em eras passadas em que raras imagens eram avidamente buscadas pelos nossos olhos, em livros, em paredes, em quadros, em afrescos, em cavernas. Com a reprodutibilidade ocorre portanto a primeira inversão: as imagens é que nos procuram.
A partir de então, quando elas encontram nossos olhos e neles se animam, ocorre a segunda inversão: porque as imagens vivem de nossos olhos, deixamos de ser também aqueles que vêem as imagens. Porque a maior parte nelas é invisível e porque a maior parte em nós é tornada artificialmente visível, são elas que nos vêem, antes que as vejamos. Quando acreditamos que as vemos, é porque elas já nos viram há tempos, já roubaram a vida e a vontade de nossos olhos e já os programaram para acreditar estarem vendo. As chamadas sondagens de mercado e as pesquisas demoscópicas comprovam este fenômeno dia após dia. Estamos em tal medida radiografados pelos olhos penetrantemente cegos da demoscopia que nada mais em nós tem o direito de existir incógnito. A força de nossos olhos, como janelas da alma que perscrutam e constroem vínculos com as profundezas do outro, foi definitivamente desativada. Para nos observar e esquadrinhar minuciosamente a demoscopia nos transforma também em imagens (seja sob a forma de gráficos e diagramas, seja em números e estatísticas), imagens sem sombras (como as imagens de mortos), sem lados obscuros, sem interrogações e sem campo de profundidade. E quando nenhuma profundidade é mais possível, então também os olhos já são supérfluos.
Tais quais os titãs viveram das relações sociais sem leis nas sociedades primitivas; tais quais os deuses receberam seu poder dos povos e das pessoas que criaram uma ordem social com leis e justiça; tais quais os déspotas exercem seu despotismo alimentado pela passividade e pelo desfalecimento social dos povos; tais quais os estados, nações e instituições políticas se sustentam pela paralisia do exercício de cidadania; também assim vivem as imagens dos olhos extenuados dos que vêem. Com irrefutável razão diagnostica Dietmar Kamper "o padecimento dos olhos" como principal enfermidade do nosso tempo. Assim a define:
A modernidade desde Leonardo da Vinci é o estagio do espelho da humanidade. Ela registrou suas experiências sobre superfícies e, provavelmente por causa da escalada de poder, considerou natural uma separação altamente artificial do mundo em realidade e imagem. Mas quando este efeito de uma vontade se desfaz, perde-se uma orientação fundamental. O mundo como imagem com a diferença asséptica de significado e significante dissolve-se em uma catástrofe do sentido. Isto impõe aos olhos, nos quais neste caso se depositaram quase todas as esperanças, novas dores. (Kamper, 1994:22)
Quanto mais medo, tanto mais imagens. Aqui principia o assim chamado "segundo capítulo na dominação do medo" (Kamper). Aqui principia a reprodutibilidade infinita e incansável das imagens. Karl Pawek já apontara o fenômeno da crescente proliferação das imagens em 1963 em seu notável "Das optische Zeitalter. Grundzüge einer neuen Epoche"(A era óptica. Fundamentos de uma nova época). Pawek (1963:15) fala em "triunfo do olho" que apenas "encontra paralelo no triunfo que a razão festejou nos séculos 17 e 18". A comparação de Pawek também aborda a "enchente de imagens" à qual não corresponde um incremento da capacidade de visão humana.
A compulsão para a reprodutibilidade conduz a uma inflação de superfícies e a uma crescente perda das profundidades e profundezas, marcas inconfundíveis e indeléveis do corpo. Assim sucumbem os corpos, na perda da dimensão de profundidade. E porque sucumbem os corpos, transformam-se as pessoas em imagens das imagens, superfícies das superfícies. Corpos de imagens e imagens de corpos já não se distinguem sob o imperativo compulsório da reprodutibilidade, abrindo caminho para uma outra ordem social. A nova sociedade não mais vive de pessoas, feitas de corpos e vínculos, ela se sustenta sobre os pilares de uma infinita "serial imagery", uma seqüência infindável de imagens, sempre idênticas. O admirável e desejável já não é mais a diferença, mas a absoluta semelhança. Não mais a capacidade criativa e adaptativa é o que se sobressai, mas sim a necessidade de pertencimento. Ser aceito, ser adepto, ser adaptado, o novo caráter juvenil já não é mais alegremente demolidor como o preconizara Benjamin (1980). Na "serial imagery society" não se permite não ser uma imagem, não há espaços para as não-imagens, nem mesmo por simulação, nem mesmo nas frações e frestas da vida-imagem. O "sentimento-de-nós" ("Wir-Gefühl") descrito por Pross, tão cultivado pela propaganda nazi-fascista, volta a atuar com potência devastadora, desta feita não contra o outro, mas contra as profundezas do si mesmo, pois o grande outro indesejável está dentro de si mesmo, é a introspecção, o olhar para o fundo de si mesmo. A sociedade imagética não abre espaços para as complexidades e exigências do corpo, para as corporeidades, quando elas insistem em emergir como diferenças, como marcas próprias, como peculiaridades, como singularidades. Há, porém, na passagem para a sociedade imagética um estágio intermediário, trazido pela revolução industrial, em preparação para a crescente rarefação do corpo: a sociedade entômica.
Outrora nos entregamos à crença que seríamos os senhores desta terra, deste planeta. Um grande e grosseiro engano. São os insetos que dominaram e dominam hoje e sempre o destino da pequena terra. E foram eles que forneceram o modelo para as comunidades humanas, sobretudo em sua sincronização de grandes massas de participantes. Passamos a ter participação minoritária nesta sociedade entômica quando nós próprios começamos a compreender e configurar nossa própria vida como insetos, em comunidades de milhões, com o tempo entomizado, com o espaço entomizado. Isto significa que morreu o indivíduo. Em seu lugar surge o "divíduo" ou o "dividíduo" que seria uma outra fomulaçao para o processo de entomização. Günther Anders já apontara para o nascimento do "divisum" em lugar do "individuum". Igualmente Kamper sinaliza o surgimento do "dividuum". A utopia do ser inteiro, que não pode ser dilacerado, que não se divide, sucumbiu com a disseminação das sociedades de insetos humanos. A primeira lei desta nova sociedade reza: cada homem é parte incompleta do todo, cada pessoa deve se ater tão somente a sua função para que o todo funcione. "Entomon" quer dizer, em grego, dividido, partido. Assim, a sociedade entômica trouxe consigo também o projeto da reprodutibilidade, repartindo indivíduos, dilacerando existências e corpos, acelerando fluxos, reduzindo complexidades, dividindo e especializando o trabalho, introduzindo a repetição exaustiva de gestos, de movimentos, de padrões, de atitudes, de modelos, de idéias. Mas reproduções em série, por simularem a arqui-textura, a tatilidade arcaica dos rituais, podem compensar o sentimento de sermos apenas tomos isolados de uma coleção, de sermos sempre incompletos e sempre apenas elos de cadeias, de sermos o dente de uma engrenagem, de sermos somente a nossa própria função. A sociedade entômica é, assim, um mecanismo funcionalista, uma sociedade maquínica, e sua sombra compensatória somente pode florescer por meio da construção de imagens e cópias de imagens. Aqui, a partir dessa sombra, surge uma sociedade paralela, a sociedade imagética, o reverso da moeda da sociedade entômica, que oferece imagem de completude, de individualidade, de beleza, de realização, de perfeição, imagens de horizontes, de futuros, de saídas, de sonhos, de projetos. As imagens, no entanto, têm de cumprir a função substitutiva de todas as múltiplas dimensões perdidas. Por isso são condenadas à reprodutibilidade desenfreada, pois se a sociedade entômica só se mantém quando em funcionamento, a sociedade imagética só se sustenta enquanto produz imagens compensatórias.
Com a consolidação da sociedade imagética, entra em cena uma outra figura de tipologia arcaica: a figura do "eco"3 . A reprodutibilidade possibilitada pelos recursos técnicos obedece a uma lógica do eco, da repetição das sílabas finais, dos sons finais, das impressões finais e superficiais. Não há memória profunda, há apenas lembranças epidérmicas. Assim também atuam as séries de imagens reproduzidas: repetem-se suas superfícies, sem memórias viscerais. Aparentemente iguais, mas no fundo e de verdade, já se revelam vitimadas pela fadiga da imagem-mãe, pois já não há mais resquícios das coisas, apenas o eco de suas superfícies. A desmemória da sociedade mediática não tem outro fundamento que não o princípio da Eco-Logia. Se isto de fato ocorre, então já não faz sentido qualquer tentativa de Ecologia, pois já não pode haver mais qualquer "oikos", qualquer preocupação com o ecossistema ambiental ou comunicacional será supérflua, pois a sociedade da imagem é regida pela infeliz ninfa Eco, rejeitada por Narciso e que apenas repete o que ouve, mas tão somente as últimas silabas, os últimos sons. Se a Ecologia pleiteia uma integração entre homem e meio ambiente, ela pressupõe a existência de homens e coisas que já não mais existem ou estão ameaçadas. O mundo das 'coisas' tornou-se mundo das "não-coisas" (Flusser). E das pessoas foram feitas imagens que reproduzem outras imagens de pessoas, portanto, ecos das imagens. Assim, toda Ecologia, estudo do meio ambiente (incluindo, sem dúvida, o meio ambiente comunicacional) torna-se para esta sociedade primeiramente desconfortável e depois obsoleta. Em seu lugar impõe-se uma Eco-Logia, ou o estudo dos efeitos das imagens em eco. Esta teria como tarefa ocupar-se da lógica da "serial imagery society", profetizada pela "Marilyn Monroe" de Andy Warhol; a ela caberia analisar seus desdobramentos e seus possíveis cenários.
Ryuta Imafuku já mencionara em São Paulo em 2003, em uma agradável e instigante "Gramática do Cotidiano"4, a possibilidade de uma "ecologia" como estudo dos ecos. Trata-se de fascinante idéia de ler ecos dentro de "oikos", em paisagem de harmônico diálogo, em dueto. Entretanto, trata-se aqui, na sociedade imagética, de considerarmos os riscos de uma outra, oposta configuração: a dos ecos sem "oikos", talvez mesmo dos ecos em guerra contra o "oikos". Em outras palavras, trata-se de imagens em proliferação desenfreada que provocam a rarefação dos corpos e seu ambiente, sem nenhuma consideração ao conceito de auto-sustentabilidade. A lógica da sociedade imagética pensa a curto e curtíssimo prazo, o prazo da última repetição, da última reprodução, que já estará obsoleta antes mesmo do término de sua curta vigência.
Desde que passamos da sociedade entômica para a sociedade imagética, um outro fenômeno passou a se tornar mais evidente, o fenômeno da iconofagia, a devoraçao de imagens, juntamente com a voracidade por imagens e a gula das próprias imagens. Por medo da morte principiamos, no alvorecer da hominização, a produzir imagens dos mortos. Por medo das imagens da morte passamos a acelerar a produção das imagens, no intuito de afastar ou recalcar a vivência da própria morte. Tais imagens em proliferação exacerbada nos remeteram ainda mais às recordações da morte. Para fugir a esse destino, as imagens passaram a se superficializar de tal forma que recordem tão somente outras imagens. Igualmente o procedimento da animação acelerada almeja a mesma fuga, por um lado pela animação, imagem do movimento, por outro pela aceleração, impeditivo da introspecção. Assim, ao consumir imagens, já não as consumimos por sua "função janela" (Kamper), mas pela sua "função biombo" (Flusser). Ao invés de remeter ao mundo e às coisas, elas passam a bloquear seu acesso, remetendo apenas ao repertório ou repositório das próprias imagens.
Assim, há tempos que as imagens procedem de outras imagens, se originam da devoraçao de outras imagens. Teríamos aí o primeiro degrau da iconofagia. As imagens que povoam nossos meios imagéticos se constituem, em grande parte, de ecos, repetições e reproduções de outras imagens, a partir do consumo das imagens presentes no grande repositório.
O segundo degrau da iconofagia surge quando nós humanos começamos a consumir as imagens. Não mais as coisas, mas seus atributos imagéticos é que são consumidos. E também não se trata de penetrar nas imagens, fazer uso de sua "função janela", para nos transportarmos para além da imagem. Trata-se de efetivamente consumir sua epiderme, sua superfície e superficialidade. Ora, "consumir" procede do latim "consumere", com os significados de ' comer, devorar", "destruir, debilitar', 'fazer morrer, extenuar'.
Com tais possibilidades de significados, o conceito de 'consumo das imagens' é perfeito para a elucidação da iconofagia. Consumimos imagens em todas as suas formas: marcas, modas grifes, tendências, atributos, adjetivos, figuras, ídolos, símbolos, ícones, logomarcas. Até mesmo a comida está sendo desmaterializada por meio das imagens, cada vez mais eco, cada vez menos "oikos", cada vez menos se comem alimentos, cada vez mais se comem imagens de alimentos (embalagens, cores, formatos, tamanhos, padrões de alimentos). O sociólogo chileno Tomás Moulian o formula com genial simplicidade: "el consumo me consume".
Também pertence a este cenário o advento do sobrepeso e da obesidade moderada como doença a ser tratada, uma patologização de estados e estéticas corporais em outras épocas considerados até mesmo desejáveis e esteticamente agradáveis. Primeiramente consideram-se corpos acima do peso não compatíveis com as imagens-padrões. Segundo, eles fogem às leis da produção em série, seus tamanhos médios não são desejáveis enquanto imagem. O mundo real, com diversidade e variedade torna-se obsoleto (cf. Anders).
Uma vez que imagens e corpos pertencem a categorias distintas, as superfícies e superficialidades não possuem os nutrientes necessários para a vida dos corpos. Mas, mesmo assim, elas elaboram uma eficiente estratégia de sedução e convencimento para que estes se transformem em imagens, primeiramente oferecendo-lhes alimentos contaminados de imagens e depois aqueles que são apenas imagens de alimentos. Com isto, inverte-se mais uma vez a direção do processo. Uma vez transformados em imagens de corpos, são estes que passam a ser devorados, consumidos pelas imagens. Temos aqui o próximo degrau da iconofagia. Nesta etapa são as imagens que devoram os corpos.
Por se tratar de um atributo da cultura humana intervir sobre a vida social e biofísica do próprio homem, todos os produtos do imaginário humano sempre possuíram uma ascendência sobre aqueles imperativos do corpo que devem ser domesticados, modificados ou até suprimidos, pelas regras da própria cultura. O exemplo da efetividade, às vezes dramática, deste princípio oferecem os estudos da medicina psicossomática que comprovam a existência de fatos culturais como potenciais agentes de patologias, somáticas ou psicossomáticas. Portanto trata-se de questão indiscutível a intervenção de realidades culturais sobre a vida biossocial dos indivíduos. Edgar Morin elucida a dinâmica da "noosfera" com sua ascendência sobre os homens que a criam. Diz Morin (IMPS:154) que "abstrações, conceitos, teorias podem adquirir ser, poder, soberania, glória. (...) Assim como somos possuídos pelos deuses que possuímos, somos possuídos pelas idéias que possuímos." E, finalmente, pergunta a seguir: "Como pode acontecer de darmos vida a seres de espírito, que lhes ofereçamos depois nossas vidas e que eles acabem por se apoderar delas?" (Morin, 1998:155)
Problemática, contudo, se apresenta a crescente independência e auto-suficiência que as sociedades humanas vêm conferindo às criações do imaginário político e mediático, à proliferação autônoma das imagens que se bastam a si mesmas, não mais se oferecendo como "janelas" para o mundo, senão como janelas para si próprias. Ou seja, não apenas ascendentes sobre os homens, mas agora auto-referentes. Tal fenômeno de auto-referência implica em uma supressão do mundo em favor das representações bidimensionais em circuito fechado, ou seja, as imagens se referem sempre e apenas a imagens.
Assim, o quadro que hoje se descortina diante de nossos olhos assume proporções inteiramente distintas daquele das culturas convencionais e seus processos de aculturação do homem, graças à escala em que ocorrem e graças à autonomia que adquiriram. A escala em que atuam as imagens mediáticas no mundo de hoje não se pode mais comparar com sua dimensão e presença na era das imagens que se prestavam ao culto nem se compara também com a força exercida pela imagem artística (cf. Belting). As imagens mediáticas possuem um enorme poder (conferido pela reprodutibilidade) e atingem uma capilaridade e penetração nunca sonhadas anteriormente. Assim, tanto maior sua força diante de um público cada vez mais amplo, de indivíduos seriados, ou de dividíduos seriados, nivelados por um repertório cada vez mais simplificado e superficial, transformados crescentemente em existências em efígie, ou seja, em puras imagens. E quanto maior a sua força, tanto mais elas podem sofrer do mal da auto-referência, maior a sua soberania e sua soberba diante do mundo.
Günther Anders (1995:25) chama de "canibalismo pós-civilizatório" o estágio correspondente à terceira Revolução Industrial que, negando Kant quando afirmava que nenhum homem deveria ser usado como meio ou ferramenta, transforma-o em matéria bruta ou matéria prima (Rohstoff). Fala ainda Anders (1995:86) de uma "torrente de mundo exterior" (Einströmen von Aussenwelt) que invade o homem, desprivatizando seu espaço de individualidade.
A rigor, esta "torrente de mundo exterior" se expressa na avalanche das imagens exógenas que nos assediam em todos os espaços e tempos, apropriando-se de nosso espaço e nosso tempo de vida, nossos mundos de interioridades e de nossos ritmos e durações vitais. Cedendo ao assédio, em primeiro lugar nos transformamos em imagens, seres sem interioridade, sem tempo, portanto, que ocupam o espaço reivindicado apenas pelas superfícies. Isto quer dizer, somos obrigados a viver uma abstração, um corpo sem matéria, sem massa, sem volume, apenas feito de funções abstratas como trabalho, sucesso, visibilidade, carreira, profissão, fama. Em seguida, ao ganharmos o status de imagens, passamos a viver também o destino das séries e reproduções, do tempo hiper-acelerado das versões que se sobrepõem às anteriores, destinando-as ao descarte imediato e já se preparando para o auto-descarte. O destino dos corpos-imagens é o do envelhecimento precoce das ondas da moda, o do hiper-aquecimento que gera curto-circuito. O mundo das imagens exógenas só sobrevive e se mantém se for alimentado por espelhamento. E alimentar pelo espelhamento é alimentar com imagens idênticas ou similares. Alimentar por espelhamento é o princípio da endogamia intrínseca das séries. Uma vez que já se descartaram as possibilidades construtivas de um novo "oikos", só os ecos conferem legitimidade às imagens que nos são impostas invasivamente. A razão econômica que criou a serial imagery society para ampliar a escala dos negócios requer retorno também em escala ampliada. Ao produzir imagens em séries, precisou produzir receptores também em séries. Para produzi-los serialmente, precisou antes transforma-los em imagens. Ao transforma-los em imagens, procurou se desfazer dos escombros e detritos resistentes, que não cabiam no circuito fechado das imagens espelhadas em forma de labirinto. E nos labirintos das séries, na catástrofe do sempre igual, sucumbimos todos os dias em nossa corporeidade que insiste e resiste.
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1 Norval Baitello Junior es Doctor en Semiótica, Profesor de la Pontificia Universidad Católica de San Pablo e invitado a dictar cursos y conferencias en diferentes universidades de Europa.
2 Oikos em grego é igual a 'casa', habitação'. Exemplo notável da destruição da habitação nos oferece V. Flusser (1998) em suas "Nomadische Ueberlegungen" (Reflexões nômades), quando retrata que o furacão da mídia penetra por todas as perfurações das casas, tornando-as inabitáveis. O mesmo conceito de fundo anima o pensamento de Flusser nesse ensaio: a perda da introspecção, do aconchego, da solidão e da profundidade, conquistadas a partir do assentamento do homem nas aldeias e cidades, com a construção de habitações fixas.
3 Segundo Junito Brandão (1991: 302), "Eco é uma ninfa dos bosques e fontes (...). Perseguida pelo lascivo Pã, a quem não amava, mas apaixonada por um Sátiro, que a evitava, acabou sendo despedaçada (...)". Prossegue o autor, com outra versão do destino de Eco: "O grande amor de Eco foi, todavia, foi o mais belo dos efebos, Narciso. Eco o seguia aonde quer que se dirigisse(...). Um dia Narciso a viu e repeliu tão friamente que Eco se isolou, fechando-se numa dolorosa solidão. Por fim deixou de se alimentar e definhou, transformando-se num rochedo, capaz tão somente de repetir os derradeiros sons do que se diz."
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Revista teórica del Departamento de Ciencias de la Comunicación y de la Información
Facultad de Humanidades -
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