Revista F@ro Nº2

A imagem e a serpente

Denize Dall' Bello1
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Resumo: Esse texto é uma história de encontros, logros e mudanças. É a história de como uma imagem - no caso, aqui, a da serpente - pode nos enfeitiçar. Falará dessa imagem como um acontecimento extraordinário que possibilitou a transformação de uma emoção - o medo - em símbolo. Esse trabalho é, portanto, o relato de um logro: de uma imagem que um dia conseguiu engolir uma serpente. É, então, a história da imagem que engoliu o medo.

Palavras chave: imagem, medo, logro e cultura.

A imagem e a serpente.

"Um único episódio pode provocar a morte, basta muito pouco. Mas, quando voltamos à vida, quando nascemos pela segunda vez e surge o tempo escondido das lembranças, o instante fatal se torna sagrado. A morte nunca é algo comum. Deixamos o profano quando convivemos com os deuses, e quando voltamos para junto dos vivos, a história se transforma em mito".
Boris Cyrulnik, 2004:2.

Quando li a respeito da realização de um Congresso Internacional sobre Comunicação, Informação e Cultura, dedicado ao tema A comunicação diante dos desafios de patrimônio cultural e as identidades, imaginei: nos dias 30 de junho, 01 e 02 de julho todos irão discutir sobre pluralidade cultural e comunicação e os variados temas que giram em torno desses dois grandes objetos ... E, eu? O que poderia expor? Não será sobre o problema da multiplicação das imagens e o modo como estamos lidando com isso em nossas experiências cotidianas - pelo menos, não diretamente. Será apenas sobre uma imagem simbólica: a serpente.

Por isso, fiquei com vontade de escrever um texto que falasse sobre a imagem e a serpente. Esse é o nome poético escolhido, mas que bem poderia se chamar também de: o medo, a cultura e o teatro. Assim, o texto conta por primeiro sobre uma breve história de um encontro: serpente e imagem e, depois, falará do enfeitiçamento em só os monstros não gostam de teatro2 : a mimese e o logro.

Breve história de um encontro: a serpente e a imagem

De um certo modo, a imagem da serpente sempre esteve me acompanhando. Pelo menos, naqueles momentos em que experimentei aquilo que em cultura se chama de ritos de iniciação ou de passagem, em que se compreende, sobretudo, - e a duras penas - a lição de "se ter de reaprender a viver uma outra vida" - conforme expressão de Boris Cyrulnik.

Um primeiro encontro aconteceu durante uma viagem pelo metrô de São Paulo no ano 2000. Na ocasião, escrevi que o deus Hades havia se colocado em ação na forma de uma serpente metálica com uma longa cabeleira vermelha. De onde venho, Cuiabá - Mato Grosso, não existe o metrô e quando parada numa das suas estações, vi saírem de dentro de um dos buracos negros dois grandes olhos luminosos, imaginei o deus subterrâneo. Um pouco mais tarde, isso acabou rendendo um trabalho intitulado A História de Hades, Perséfone e o Metrô. O metrô-serpente era Hades e eu a Perséfone raptada. Todavia, a elaboração desse trabalho conduziu-me a uma história ainda mais antiga que a dessa de Perséfone. Levou-me à história da deusa suméria Inana - herdeira da escrita entre outras artes manuais. Fica-se sabendo ali como a deusa adquiriu essas criações. Após embriagar Enki, a quem chama de irmão, rouba-o.

Tempos depois, um segundo encontro se realizou. Esse se deu no transcorrer da leitura de Vilém Flusser e do seu conceito de decifração. Para Flusser, decifração viria de "cifra" que significa uma vasilha vazia, na qual coisas são colocadas dentro. A palavra zero derivaria daí. Decifrar seria, por conseguinte, o ato de selecionar, de catar conteúdos de um certo tipo dentro de vasilhas3 . Ler poderia ser descrito, então, como um processo de catar letras, decifrar contas, contar histórias com tenacidade e paciência - completei - pois, essas são atividades que pertencem ao tempo da pedra. A pedra - disse Gaston Bachelard - contém a mais lenta de todas as vidas (Cf. Bachelard, 2001: 128). Estava ali a outra ponta (cauda!) da escrita: a leitura. Essa foi uma das idéias que constou em um trabalho de tese intitulado A Pedra e a escrita: escavações na mídia secundária.

É de se perguntar então: onde ficava a imagem da serpente nesse percurso todo? Aconteceu de ficar sabendo sobre o livro de Aby Warburg chamado O ritual da serpente. Nele, Warburg narra a viagem que fez em 1895 até a região dos índios Pueblo no Novo México e Arizona. Durante a visita, questionou-se sobre a rapidez com que cidades eram construídas e sobre as estradas de ferro estendendo-se pelo território dos indígenas. Achou que valia muito a pena realizar fotografias de toda essa transformação, dos despenhadeiros e da aridez do território, do interior e da vista das casas nesses povoados rochosos, de alguns dos seus moradores e também do ritual do antílope em Walpi. Mas não chegou a presenciar o ritual com serpentes vivas em Oraibi - só conheceu essa dança mediante fotografias. Em contrapartida, pôde observar com espanto umas ilustrações de serpente que o índio Cleo Jurino e seu filho Anacleto Jurino fizeram em sua presença em um hotel em Santa Fé.

Contou Aby Warburg que a dança da serpente acontece no mês de agosto que é quando as tormentas chegam aos povoados. No deserto e durante dezesseis dias são capturadas cascavéis e transportadas até o kiwa, um santuário subterrâneo, onde os caciques dos clãs dos antílopes e da serpente as guardam cautelosamente. Aqui - registrou Warburg - as serpentes são tratadas como noviças, pois são lavadas com uma espécie de água benta cheia de ervas medicinais. Em seguida, são lançadas sobre um desenho de areia, onde está a imagem de quatro serpentes com um quadrúpede ocupando o centro. Em um outro quarto subterrâneo, há um segundo desenho composto por um amontoado de nuvens, do qual saem quatro raios em forma de serpente de cores diversas. Cada uma corresponde aos quatro pontos cardeais. As serpentes ficam guardadas nos santuários até o último dia da cerimônia, quando, então, são levadas até um arbusto que está delimitado por um círculo traçado no solo. O ponto culminante da cerimônia ocorre quando o supremo sacerdote do clã da serpente, juntamente com outros companheiros, se aproxima do arbusto e extrai dali uma das serpentes. Ao ritmo de chocalhos que lembram os sons produzidos por esses répteis, agarra a escolhida e a leva até a boca, prendendo-a entre os dentes, enquanto outro companheiro procura distrair a atenção da serpente. Um terceiro índio cumpre a função de protetor e também busca confundir o animal no caso deste desprender-se da boca de seu portador. Meia hora depois, os índios devolvem as serpentes às planícies onde desaparecem rapidamente. É o fim do ritual da serpente.

Vinte e sete anos depois, Warburg conseguirá proferir uma conferência sobre esse acontecimento.

Só os monstros não gostam de teatro: a mimese o logro.

Engolir, digerir, metamorfosear, gerar. Pode-se fazer uma reflexão sobre a imagem a partir dessas palavras? O ritual da serpente e outros mitos de culturas antigas indicam que sim e oferecem exemplos de jornadas realizadas por heróis ou por deusas - foi o caso de Perséfone e de Inana - que passaram por operações de transformação da própria imagem interior, portanto, da sua identidade, mostrando, assim, que é possível tratar de imagem a partir de mitos e de ritos. Mas não no sentido de se ter de aprender a interpretação antiga e reaprender a sua linguagem simbólica, puramente, e, sim, no sentido de nos possibilitar compreender que, se existe um aspecto característico e destacado no mundo das imagens, esse diz respeito ao da metamorfose.

Revela o mito homérico que Hades é aquele que é conhecido por ter muitos disfarces. Para levar embora Perséfone, fez-se de narciso e a arrebatou. Os índios Pueblo, por sua vez, também puseram-se um disfarce a fim de fazer com que a serpente do deserto participasse da sua cultura. Como notou Warburg, nos tornozelos, amarraram carapaças de tartaruga cheias de pedras para imitar o ruído da cascavel e no rosto colocaram pintura e tatuagem para melhor sensibilizá-la.

Todavia, no mundo dos animais não é assim: algumas borboletas simulam ser folhas e desse modo podem - temporariamente - habitar o universo vegetal. Um polvo, explicou Roger Caillois, também pode fazer-se de outro: retraindo os tentáculos, curvando o dorso e mudando de cor, finge ser uma pedra e espanta o predador. Os homens - não os deuses - como se viu a pouco, não podendo atuar diretamente sobre o próprio corpo, criaram o disfarce. E assim põem sobre esse uma representação - uma mídia diria Norval Baitello.

Por que motivo precisaram de disfarces? Pode dizer-se - conforme Cyrulnik - que foi para que um encontro ocorresse. O disfarce, a máscara contém, então, história de encantamentos. Não poderia o deus do subterrâneo ter-se encontrado com Perséfone - a filha da superfície - caso não tivesse plantado uma armadilha para a menina. Teria de ter sido o jacinto que inspirava maravilha em quem o contemplasse, fosse deus imortal ou homem mortal e todo o céu acima, e toda a terra, e as ondas de sal no mar, sorriram e regozijaram-se com a sua fragrância4 e não uma lança de caça. Num mundo de Perséfone, a forma colorida e a fragrância a cativaram: não pôde deixar de esticar as mãos e pegá-lo. É por isso que se pode pensar em Hades como um grande conhecedor da mímica e do disfarce. Não tivesse assumido a aparência de flor e o triste rapto de Perséfone talvez nunca tivesse existido.

Do mesmo modo, como poderiam os índios Pueblo ter realizado a dança da serpente se não tivessem elaborado um ritual capaz de as cativar? Foi preciso um conjunto de movimentos, de sons, de corpos organizados que compusesse "a fraude" que a serpente espera. Deve, pois, um dançarino saber morder entre dentes a serpente sem ser mordido - anotou Warburg, surpreendendo-se com o modo como esse ser voluntariosamente aceitava as instruções sensoriais dos dançarinos. É isso um ritual: o comportamento de um leva o outro a se exibir. Este maneira de agir permite a exploração do mundo íntimo do outro. De modo que o ritual também constituiu num exemplo de logro, isto é, um exemplo de um artifício tranqüilizador. Quando Aby Warburg deparou-se com essa dança, ele logo entendeu que não se tratava apenas de uma dança com movimentos, mas de um logro. Compreendeu que os dançarinos de Walpi ao destinarem suas intenções à serpente do deserto, pensavam agir sobre ela, porque eram capazes de imaginar o mundo desse ser. Conheciam o que era necessário fazer para a mobilizar. Nas palavras de Cyrulnik, eles codificaram os seus gestos - talvez, algumas palavras, também - para manipular as emoções do animal. O logro tem, então, poder de vinculação. É por essa razão que não se podia pensar em exterminar tal animal. Como fazê-lo, se a relação tinha sido personalizada?

Isso permite a interpretação do ritual da serpente num outro nível. No caso, aqui, cuja intenção é a de compreender a imagem - símbolo vivo para os índios Walpi - como uma intermediadora de um encontro, dir-se-ia que se trata de observar também como a emoção - o medo - pôde transformar-se em símbolo.

De todos os animais, a serpente representa o horror absoluto. Sentimos temor e angústia a tudo que é úmido, rasteja e possui forma alongada. Nossa fobia pela serpente é atávica e própria de todos os primatas - ressaltou Cyrulnik (2001:130).

Assim, o ritual da serpente pode ser lido como uma peça sobre o medo. Como enfrentar a angústia da falta de alimento e proteger-se dessa realidade aversiva? Pois o problema para os índios Walpi era: no mês de agosto acontecia uma crise na agricultura, as colheitas dependiam das escassas e eventuais chuvas (Warburg, 2004:45). Era preciso, então, digerir essa ameaça: pegá-la, colocá-la num kiwa, fazer gestos e organizar uma cerimônia. Porque o medo é uma emoção compartilhada é que se pode "mordê-lo" e superá-lo, quer dizer: incorporá-lo à memória individual e coletiva. Um medo indigesto nunca vira símbolo de nada.

Portanto, o ritual que encantou Warburg ensina o valor dos objetos de medo para a cultura. Ele dá uma imagem do processo da metabolização do medo em representação. Na ausência deles - explicou Cyrulnik - desenvolve-se a angústia e o sentimento de vitória é apagado. A escassez de chuva é quem permitiu, então, o nascimento do ritual - do logro - como já se disse. De modo que é possível também entendê-lo como uma resposta comportamental às pressões do ambiente ou às necessidades fisiológicas e que serve para comunicar. Só se pode falar do logro quando, em alguma situação, se é obrigado a encarar a morte.

O logro coloca, assim, uma questão para a condição da imagem na atualidade: sabendo-se que a reprodução desempenha um papel de multiplicador de imagens, talvez, o problema da banalização que elas hoje enfrentem esteja no fato de que as imagens perderam a capacidade de nos lograr: já não se engole mais o logro. O excesso impede a emoção da encenação. Porque quando a realidade se torna monstruosa - insiste Cyrulnik - é preciso transformá-la para torná-la suportável. Perséfone não teria escapado do seu mundo horizontal e ascendido ao mundo inferior - vivendo num lá e num cá - se não tivesse engolido um logro. A deusa Inana não disporia das artes manuais, caso não tivesse inventado um artifício para enganar Enki. E Warburg sofrendo de uma forma de esquizofrenia, não teria realizado uma viagem pelo interior do território dos índios Pueblo, se não tivesse sido engolido pela imagem da serpente. Visto que o logro é um supersinal que captura o sujeito, todos foram apanhados - felizmente.

Comum a todos: o vazio compreendido como uma lesão. "Como driblá-lo?" Comum a todos: um encontro, um distanciamento e, então, a aventura da metamorfose. Perséfone, Warburg e os índios Pueblo tomaram na imagem e na serpente viva a representação dos seus medos e obsessões e fizeram desses um "acontecimento interpretável e socializado" (Cyrulnik: 2004). Comum a todos: a história de imagens e símbolos que um dia engoliram o medo.

Referencias bibliográficas

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 127-162.

BAITELLO, Norval. O animal que parou os relógios. São Paulo: Annablume, 1999.

________________. As imagens que nos devoram: Antropofagia e Iconofagia. http://www.cisc.org.br/biblioteca/iconofagia.pdf

BERRY, Patricia. O rapto de Deméter/Perséfone e a neurose. In:HILLMAN, James. Encarando os Deuses. São Paulo: Cultrix, 1980.

CYRULNIK, Boris. Memória de macaco e palavras de homem. Lisboa, Instituto Piaget, 1993.

________________. Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática, 1995.

________________. O nascimento do sentido. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

_______________. Do sexto sentido: o homem e o encantamento do mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

_________________. Os patinhos feios. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

FLUSSER, Vilém. Writings. Minneapolis/London, University of Minnesota Press. 2002.

PERERA, Sylvia B. Caminho para a iniciação feminina. São Paulo, Paulus. 1985.

PICQ, Pascal; DIGARD, Jean-Pierre; CYRULNIK, Boris e MATIGNON, Karine Lou. La más bella hitoria de los animales. Santiago de Chile, Andrés Bello. 2001.

WARBURG, Aby. El ritual de la serpiente. México: Sextopiso Editorial, 2004.

WOOLGER, Jennifer Barker, WOOLGER, Roger J.. A Deusa Interior. São Paulo, Cultrix. 1989.


Notas

1 Professora no departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso, tendo defendido tese de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2004.

2 O título "Só os monstros não gostam de teatro" é uma referência direta ao segundo capítulo que abre a parte II do livro Os patinhos feios de Boris Cyrulnik, publicado em 2004.

3 Estas informações provieram das aulas do professor Norval Baitello, durante o seminário Vilém Flusser e as versões do objeto realizado no segundo semestre de 2003.

4 Essa descrição está no livro de Jennifer Barker WOOLGER e Roger J. WOOLGER. A Deusa Interior: 181.


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Revista teórica del Departamento de Ciencias de la Comunicación y de la Información
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