Revista F@ro Nº2

A cultura do individualismo na sociedade contemporânea
e a formação das identidades

Alexandre Rossato Augusti
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Resumo: Refletir sobre a sociedade que entra no século XXI e aponta para o individualismo é o objetivo principal do trabalho, que propõe uma abordagem teórica. A cultura cotidiana é fortemente influenciada pela mídia, publicidade e consumo que pregam o bem-estar individual, o lazer, o interesse pelo corpo, os valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro. Algumas pessoas tendem a afirmar a sua identidade por meio do consumo próprio. Surgem ainda a "privatização" das crenças, valores e estilos e, dessa forma, as identidades parecem frágeis e temporárias. É a partir dessa perspectiva que vamos fundamentar nossos argumentos, procurando refletir sobre a individualização na sociedade moderna e sua influência nas identidades e no comportamento contemporâneo.

Palavras chave: individualismo; comportamento; identidade

A sociedade que entra no século XXI não nos parece menos moderna do que aquela que entrou no século XX. No máximo, ela é moderna de uma outra forma. Duas características fazem nossa forma de modernidade nova e diferente (BAUMAN, 2001: p. 37). A primeira são o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna - "[...] da crença de que há um fim do caminho em que andamos [...], um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados". A segunda aponta para o individualismo e consiste na desregulamentação e na privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi individualizado.

Ainda que a idéia de aperfeiçoamento (ou de modernização adicional do status quo) pela ação legislativa da sociedade como um todo não tenha sido completamente abandonada, a ênfase (juntamente, o que é importante, com o peso da responsabilidade) se transladou, decisivamente, para a auto-afirmação do indivíduo. Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso ético/político do quadro da "sociedade justa" para o dos "direitos humanos", isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado. (BAUMAN, 2001:38).

Essas escolhas definem um mundo onde poucas derrotas são definitivas e poucos contratempos são irreversíveis, mas nenhuma vitória é final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. "Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham 'data de validade', caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura". (BAUMAN, 2001:74).

Bauman (2001) assume uma postura rígida ao caracterizar a individualidade contemporânea , do estágio leve e fluido da modernidade , como uma fatalidade, não uma escolha, da mesma forma que no estágio sólido e pesado. Isso se deve, explica o autor, justamente ao cenário da liberdade individual de escolher, onde não existe a opção de escapar à individualização.

A nossa cultura cotidiana, da mídia, do consumo e da publicidade, é amplamente dominada pelo bem-estar individual, pelo lazer, o interesse pelo corpo, os valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro. "Desde a entrada das nossas sociedades na era do consumo de massa, predominam os valores individualistas do prazer e da felicidade, da satisfação íntima, não mais a entrega da pessoa a uma causa, a uma virtude austera, a renúncia de si mesmo." (LIPOVETSKY, 2004:23).

Tomemos emprestada de Lipovetsky uma explicação referente ao consumo contemporâneo para apontar uma das possíveis justificativas para o individualismo atual. Segundo o autor, nas sociedades em que não existem mais grandes ideologias políticas, um certo número de indivíduos tende a querer afirmar a sua identidade por meio do consumo próprio. Nota-se a multiplicação dos "produtos simbólicos", que permitem imprimir escolhas sociais, valores, uma visão de mundo, uma identidade individual e opcional. "Inúmeros consumidores - um em cada dois, segundo algumas pesquisas - declaram agora que a dimensão do sentido e do valor dos produtos os estimula a comprar." (LIPOVETSKY, 2004:53-54).

Sennett afirma que, no presente moderno, buscamos não tanto um princípio, mas uma reflexão, a saber, o que são nossas psiques, ou o que é autêntico em nossos sentimentos.

O eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo. E precisamente porque estamos tão absortos em nós mesmos, é-nos extremamente difícil chegar a um princípio privado, dar qualquer explicação clara para nós mesmos ou para os outros daquilo que são as nossas personalidades. A razão está em que, quanto mais privatizada é a psique, menos estimulada ela será e tanto mais nos será difícil sentir ou exprimir sentimentos. (SENNETT, 1988:16).

Sobre a influência da mídia em relação ao comportamento, Lipovetsky afirma ser dificilmente contestável a idéia de que a mídia exerce um poder social em matéria de transformação de modos de vida, dos gostos e dos comportamentos.

Nos anos 20, a publicidade empenhou-se na destruição dos costumes locais e dos comportamentos tradicionais, inculcando normas modernas de consumo, propagando as idéias de conforto, de juventude e de novidade. Desde os anos 50, vê-se, sem trégua, na publicidade uma máquina de uniformização capaz de produzir uma "felicidade conformista", materialista e mercantil. O mesmo vale para os jornais, rádio, cinema e televisão, que adquiriram um imenso poder de uniformização dos gostos e das atitudes. A capacidade midiática de criar, em grande escala, fenômenos comportamentais e de emoções similares expressa-se em best-sellers, em hits, na idolatria de stars, na adesão às modas, no sucesso do mês, etc. Mesmo os gestos mais cotidianos tendem a homogeneizar-se. (LIPOVETSKY, 2004:68).

A mídia é uma das forças subentendidas na formidável dinâmica de individualização dos modos de vida e dos comportamentos da contemporaneidade. "A imprensa, o cinema, a publicidade e a televisão disseminaram no corpo social as normas de felicidade e do consumo privados, da liberdade individual, do lazer e das viagens e do prazer erótico: a realização íntima e a satisfação individual tornaram-se ideais de massa exaustivamente valorizados." (LIPOVETSKY, 2004: 70).

A partir anos 60, as grandes instituições coletivas perderam uma considerável parte do seu poder regulador (LIPOVETSKY, 2004). Mulheres, jovens, minorias sexuais, cidadãos e crentes, entre outros, libertaram-se dos modos de enquadramento sociais anteriores. Foi nesse panorama que comunicação e consumo fizeram insurgir o que Lipovetsky chama de "segunda revolução individualista", marcada pela falência dos grandes sistemas ideológicos, pela cultura do corpo, do hedonismo e do psicologismo, pelo culto à autonomia subjetiva. Esse contexto limita cada vez menos as condutas individuais. Todos têm liberdade de compor e recompor suas orientações e modo de vida através da oferta crescente de referências. A mídia trabalha, nesse sentido, nas sociedades democráticas, para privatizar os comportamentos, individualizar as práticas, privilegiar o individual em detrimento do coletivo.

Se a mídia funciona como instrumento de estimulação e de legitimação hedonistas, contribui, paralelamente, para destilar uma situação de insegurança, amplificando os temores cotidianos: medo alimentar, medo de vírus, da pedofilia, da obesidade, da violência urbana, da poluição. Quando liberado da sujeição ao coletivo, o indivíduo acha-se cada vez mais submetido aos poderes do medo e da inquietude:

Pelo sensacionalismo, a mídia constitui uma extraordinária caixa de ressonância dos perigos que planam sobre nossas existências. Por um lado, a mídia mergulha no lúdico e nas distrações superficiais; por outro lado, não pára de intensificar as imagens de um mundo repleto de catástrofes e de perigos. (LIPOVETSKY, 2004: 76-77).

As grandes mobilizações de caráter emocional só podem ser compreendidas se vinculadas ao triunfo dos valores hedonistas, lúdicos e psicológicos amplamente veiculados pelos sistemas de comunicação (LIPOVETSKY, 2004). Para estes, a espontaneidade dos afetos, a vida no presente e a liberdade nos engajamentos adquiriram uma legitimidade de massa.

Um "manual" de instruções para as escolhas

O indivíduo moderno precisa de boas razões para seguir seu Deus e suas crenças, afirma Chagas. No entanto, além dos diferentes deuses e crenças religiosas de que dispomos, hoje, como medidas paliativas para nosso mal-estar, temos inúmeras outras ofertas de orientação para a vida. Elas determinam o que devemos fazer para evitar medos, incertezas e insuficiências. "Elas oferecem, além de outras coisas, a quem procura o auto-conhecimento, a receita da felicidade plena, 'aqui e agora', 'na Terra'." (CHAGAS, 2001:25).

Em relação à reflexividade constituinte da sociedade moderna, consideremos, como explica Giddens (2002), que o indivíduo vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre os possíveis modos de vida. A modernidade representa uma ordem pós-tradicional que suscita constantes decisões sobre o comportamento, representadas por questões referentes ao que vestir ou ao que comer, por exemplo. Essas decisões fazem referência à auto-identidade. Giddens alerta para a consciência relativa que a identidade do eu pressupõe: é aquilo de que o indivíduo está consciente no termo "autoconsciência". A auto-identidade é algo que deve ser criado e sustentado rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo.

No nível do eu, a escolha funciona como um componente fundamental da atividade cotidiana. Giddens aponta para o fato de que todas as tradições são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões possíveis de comportamento, mas que, por definição, a tradição, ou os hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente fixos. O indivíduo deve fazer escolhas referentes a seu estilo de vida , é obrigado a fazê-lo. Cada uma das decisões que uma pessoa toma diariamente contribui para as rotinas que determinam estilos de vida. Todas as escolhas são decisões não só sobre como agir, mas também sobre quem ser.

Padrões gerais de estilo de vida são menos diversos que a pluralidade de escolhas disponíveis nas decisões diárias e mesmo nas decisões estratégicas de prazo mais longo (GIDDENS, 2002). Um estilo de vida envolve um conjunto de hábitos e orientações, tendo determinada unidade que liga as opções em um padrão mais ou menos ordenado. Estando comprometido com determinado estilo de vida, o indivíduo necessariamente avalia várias opções como inadequadas a ele, da mesma forma que julga os outros com quem interage. Além disso, a seleção ou criação de estilos de vida é influenciada por pressões de grupos e pela visibilidade de modelos, assim como pelas circunstâncias socioeconômicas. Como envelhecer melhor, dormir melhor, relaxar e comer melhor são questões apontadas por Lipovetsky como solucionáveis pelos mais variados livros que funcionam como guias para um indivíduo que quer soluções eficazes e técnicas para os diversos problemas e questões da vida.

Como descreve Chagas, o sujeito moderno tem o desejo de ser o único e o melhor de todos. Essa é uma crítica que, de certa forma, acompanha o raciocínio de Bauman e Giddens. Ora, se cada indivíduo tem a ambição de ser o melhor e se o discurso de auto-ajuda alimenta essa ilusão, inevitavelmente verificamos a ineficácia dessa promessa, já que, obviamente, nem todos podem ocupar posições vantajosas, pelo menos não a todo o mundo e em qualquer âmbito.

O surgimento de novos estilos de vida afeta a produção, o trabalho e o cotidiano de cada indivíduo. Os valores se transformam e tornam obsoleto para hoje aquilo que valia ontem, da mesma forma que o futuro próximo pode desmerecer aquilo que valorizamos agora.

Conforme Bauman, a busca ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é também uma variedade do comprar. As lições são de que nossa felicidade depende apenas de nossa competência pessoal e de que existem muitas áreas em que precisamos ser mais competentes.

Vamos às compras" pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos esconder do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa "dependência" do parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar dinheiro antes de ganhá-lo [...]. a lista de compras não tem fim. Porém por mais longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não figura nela. E a competência mais necessária em nosso mundo de fins ostensivos infinitos é a de quem vai às compras hábil e infatigavelmente. (BAUMAN, 2001: 87-88).

Em um mundo abarrotado de mercadorias, o exagero de ofertas tentadoras tende a exaurir rapidamente o potencial gerador de prazeres de qualquer mercadoria. Aqueles que têm recursos estão protegidos contra a efemeridade dos desejos e de suas satisfações. No entanto, Bauman aponta para uma particularidade da classe que sustenta tal vantagem: ter recursos implica a liberdade de escolher, mas também a liberdade em relação às conseqüências da escolha errada, e, dessa forma, a liberdade dos atributos menos atraentes da vida de escolhas. Nesse contexto, surgem "o sexo de plástico" , os "amores múltiplos" e "relações puras", aspectos retratados por Giddens como veículos de emancipação e garantia da autonomia individual e da liberdade de escolha.

Uma vez que as crenças, valores e estilos foram "privatizados" - descontextualizados ou "desacomodados", com lugares de reacomodação que mais lembram quartos de motel que um lar próprio e permanente -, as identidades não podem deixar de parecer frágeis e temporárias, e despidas de todas as defesas exceto a habilidade e determinação dos agentes que se aferram a elas e as protegem da erosão. A volatilidade das identidades, por assim dizer, encara os habitantes da modernidade líquida. E assim também faz a escolha que se segue logicamente: aprender a difícil arte de viver com a diferença ou produzir condições tais que façam desnecessário esse aprendizado. (BAUMAN, 2001: 204).

Encontramos em Chagas uma explicação sobre o funcionamento do discurso de auto-ajuda que contribui para elucidar o porquê dessa fórmula atrair tantos adeptos. Para ele, não existe interesse pela reflexão do pensamento crítico, visto que a proposta do discurso de auto-ajuda é a de dar certo sem nunca falhar.

Considerando que exista (LIPOVETSKY, 2004) um hiperindividualismo na época atual, pensemos, então, nas novas modalidades de consumo ligadas às tecnologias da comunicação e da informação, no crescimento das religiões à la carte e emocionais, na desistitucionalização da família, no culto da saúde e da forma, na busca desmedida da beleza, no consumo excessivo de medicamentos e psicotrópicos, na corrida aos regimes e na busca pela alimentação sadia.

Hoje, mais do que qualquer outra época, produz-se uma violência sobre a imagem de si mesmo, uma violência simbólica [...], na medida em que assumimos a verdade de que aquele tipo de corpo somos nós que não aceitamos, na medida em que incorporamos uma verdade sobre ele como "natural" em nós mesmos. (FISCHER, 1998: 431).

A valorização dessa tendência, a tomada da juventude e da beleza como valores, que parece aumentar cada vez mais, torna-se evidente no discurso veiculado pelos mais variados meios de comunicação. As imagens publicitárias, as fotos da moda e principalmente a imprensa feminina exemplificam a penetração da mídia até no mais íntimo, especialmente em tudo o que diz respeito à aparência do corpo. Esse movimento suscita expressões como "tirania da beleza". "Quanto menos a moda (vestuário) é diretiva, mais a lei da magreza e da juventude é exaltada e valorizada. Quanto mais a moda se torna pluralista, mais o corpo esbelto e firme torna-se um ideal consensual." (LIPOVETSKY, 2004: 69).

Podem ser distinguidos diversos aspectos do corpo com relevância especial para o eu e a auto-identidade (GIDDENS, 2002). A aparência corporal diz respeito a todas as características da superfície do corpo, incluindo modos de vestir e de se enfeitar, visíveis pelo indivíduo e pelos outros, que geralmente são usados como pistas para interpretar as ações. A postura determina como o corpo é mobilizado em relação às convenções constitutivas da vida diária. O corpo se tornou parte da reflexividade da modernidade: "Regimes corporais e a organização da sensualidade na alta modernidade se abrem à atenção reflexiva contínua, contra o pano de fundo da pluralidade de escolha." (GIDDENS, 2002: 98). Tanto o planejamento da vida quanto a adoção de opções de estilo de vida se integram, em princípio, aos regimes corporais.

Fischer retoma uma reflexão de Hobsbawm, para quem o século XX seria conhecido por um fato radical na cultura ocidental: o "rejuvenescimento" da sociedade. Do ponto de vista da expectativa de vida, somos mais velhos, ao passo que, do ponto de vista cultural, somos ou devemos ser, sempre e eternamente, jovens. A partir disso, Fischer demonstra que talvez a principal "lição de vida" que a mídia, a publicidade e mesmo os discursos médicos nos convidem a aprender hoje é a de que devemos ser e ter, obrigatoriamente, um corpo jovem. Belo e digno de exemplo seria aquele adulto que se conserva fisicamente jovem, embora se continue afirmando que importa mesmo é a "beleza interior"(Fischer,1998). "A culpa ocidental cristã em relação aos valores externos, à materialidade da beleza dos corpos, exige que se afirme uma bondade interna, o que é permanentemente negado pelo elogio à juventude e pela rejeição do corpo que envelhece." (FISCHER, 1998: 428).

O corpo não pode ser mais meramente aceito, alimentado e enfeitado segundo o ritual tradicional. Ele se torna, agora, parte central do objeto do projeto reflexivo da auto-identidade. Embora os modos de apresentação do corpo tenham que ser desenvolvidos a partir de uma diversidade de opções do estilo de vida, a decisão entre as alternativas não é em si mesma uma opção, mas um elemento inerente da construção da auto-identidade. "O planejamento da vida em relação ao corpo, portanto, não é necessariamente narcisista, mas parte normal dos ambientes sociais pós-tradicionais. (...) o planejamento do corpo é mais freqüentemente um envolvimento com o mundo exterior que uma retirada defensiva dele." (GIDDENS, 2002:165). O discurso midiático pauta com freqüência e intensidade impressionantes valores como juventude e beleza, exaltando a exposição dos corpos e evidenciando a exclusão daqueles que estão distantes dos padrões de beleza reiterados pela mídia.

O termo relacionamento, com o significad de vínculo emocional próximo e continuado com outra pessoa, só chegou ao uso geral em uma época relativamente recente. Giddens (1993) utiliza a expressão relacionamento puro para se referir a esse fenômeno. Um relacionamento puro refere-se a uma situação em que se entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo que cada uma das partes envolvidas pode usufruir dessa união, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela permanecerem. Giddens situa a idéia de um amor confluente como um amor ativo, contingente, que entra em choque com as categorias "para sempre" e "único" da idéia do amor romântico.

O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocionais, e quanto mais for assim, qualquer laço amoroso aproxima-se muito mais do protótipo do relacionamento puro. Neste momento, o amor só se desenvolve até o ponto em que se desenvolve a intimidade, até o ponto em que cada parceiro está preparado para manifestar preocupações e necessidades em relação ao outro e está vulnerável a esse outro. (GIDDENS, 1993: 73).

É o amor confluente que transforma a realização do prazer sexual recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento. As fontes de informação, de aconselhamento e de treinamento sexual organizam reflexivamente o cultivo de habilidades sexuais e a capacidade de proporcionar e experimentar satisfação sexual por ambas as partes.

Os relacionamentos contemporâneos podem ser explicados através de uma metáfora (BAUMAN, 2004) se utilizarmos a palavra "rede" no lugar de "relações", "parentescos", "parcerias" ou outras noções similares. Uma rede serve tanto para conectar quanto para desconectar, enquanto as demais expressões ressaltam o engajamento mútuo ao mesmo tempo em que excluem ou omitem a falta de compromisso. Nas redes, conectar ou desconectar são escolhas igualmente legítimas, que gozam do mesmo status e têm mesma importância. As conexões são estabelecidas e cortadas por escolhas.

A hipótese de um relacionamento "indesejável, mas impossível de romper" é o que torna "relacionar-se" a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma "conexão indesejável" é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las. (BAUMAN, 2004: 12).

Essas conexões formam o tipo de relacionamento mais condizente com o líquido cenário da vida moderna. "Se espera e se deseja que 'as possibilidades românticas' (e não apenas românticas) surjam e desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de 'ser a mais satisfatória e a mais completa.'" (BAUMAN, 2004: 12). Contudo, quando surge a tendência de substituir as parcerias pelas redes, ao não ser mais possível sustentar um relacionamento, entra em cena também a maior dificuldade de estabelecer-se, pois não há mais a habilidade que pode, ou poderia fazer, a união funcionar. Bauman defende que a facilidade do desengajamento e do rompimento, a qualquer momento, não reduz os riscos, apenas os distribui de modo diferente, junto com as ansiedades que provoca.

Considerações finais

Giddens (1993) defende que uma crescente propensão à experiência da vergonha - a sensação de que se é inútil, a vida é vazia e o corpo é um instrumento inadequado - segue a difusão dos sistemas internamente referenciais da modernidade. O projeto reflexivo do eu, que traz possibilidades de autonomia e felicidade, tem de ser assumido no contexto das rotinas muito desprovidas de conteúdo ético.

O tratamento oferecido ao indivíduo contemporâneo em relação aos relacionamentos, por exemplo, é decorrente justamente do individualismo muitas vezes exacerbado. Talvez a saída não seja louvar sem restrições o individualismo como solução para esses problemas modernos, mas nem condená-lo como responsável pelo mal-estar do homem da sociedade fluida. Poderíamos relativizar, tendo consciência, no entanto, de que deslocamos o problema para outra dimensão: não aquela que nos remete à escolha entre o bem-estar individual ou à ojeriza a essa busca aparentemente egoísta, e sim aquela que se refere às situações em que devemos optar pelo nosso benefício ou pelo dos outros, ou ainda pelo de todas as partes envolvidas.

É sabido que as condutas do homem contemporâneo são muitas vezes normatizadas por especialistas, como psicólogos e psiquiatras, e que isso pode impelir esse homem para a consciência individualista, que autores como os que utilizamos muitas vezes condenam. Nesse páreo, presenciamos a inevitável posição do indivíduo moderno: a de um homem entre muitos caminhos, com a missão de escolher como agir e quem ser. Essa angústia parece, então, persistir.

Referencias bibliográficas

BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2004.

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2001.

CHAGAS, Arnaldo Toni Sousa das. A ilusão no discurso da auto-ajuda e o sintoma social. Ijuí, UNIJUÍ. 2001.

FISCHER, Rosa Maria Bueno: Mídia e produção de sentidos. En A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis, Vozes. 1998.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de janeiro, Jorge Zahar. 2002.

GIDDENS, Anthony. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista. 1993.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro, DP&A. 1999.

LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultural liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre, Sulina. 2004.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo, Companhia das Letras. 1988.


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Revista teórica del Departamento de Ciencias de la Comunicación y de la Información
Facultad de Humanidades - Universidad de Playa Ancha
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