Revista F@ro Nº2

Ontem, hoje e amanhã - sobre os rituais midiáticos

Dra. Malena Segura Contrera 1
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Resumo: A presente reflexão trata da sobrevivência de elementos do ritual primitivo na Comunicação e na Mídia contemporâneas. Se por um lado, o espaço midiático é o novo locus social contemporâneo, e dai compreende-se que conteúdos da cultura tais como as práticas rituais também se tornem presentes no espaço da mídia, por outro lado, a própria esfera midiática se viabiliza e legitima a partir do uso recorrente desses elementos do ritual. Neste sentido, podemos identificar o processo de retroalimentação entre os imaginários cultural e midiático, reafirmando a estreita relação entre ritual, vinculação social do grupo e comunicação social.
Dessa forma, tentamos compreender o processo de dessacralização e desencantamento do mundo operado pela sociedade industrial e a busca de um re-encantamento, ainda que simulado, operado pela sociedade contemporânea pós-industrial também por meio das práticas midiáticas.

Palavras chave: Ritual primitivo- Comunicação e Mídia- desencantamento do mundo- re-encantamento

"E senso de realidade é, sob certos aspectos, sinônimo de religiosidade. Real é aquilo no qual acreditamos... Com efeito, nossa situação é caracterizada pela sensação do irreal e pela procura de um senso novo de realidade. Portanto, pela procura de uma nova religiosidade." (V. Flusser: 2002: 13)

1. Rituais interpessoais e cotidianos: contribuições da Etologia

Partindo de uma concepção de ritual mais abrangente e próxima dos estudos da Etologia, visto referir-se aos rituais primários relativos à constituição dos sistemas vivos, temos que toda a vida humana é ritualizada. Essa ritualização começa já na constituição de códigos primários biológicos que dão origem a campos sensoriais partilhados, campos esses que por sua vez se desdobram nos rituais de convivência e comunicação interpessoal, como atestam os etólogos:

O ritual que permite a cada indivíduo ocupar seu lugar biológico, comportamental e emocional no interior do grupo serve também de cimento para o corpo social, que, graças a ele, permanece unido e funciona 'como um único homem'. Nesse nível de organização do ser vivo, o ritual é uma conduta que tem por efeito estimular a biologia dos indivíduos e sincronizar os grupos (B. Cyrulnik: 1995: 106).

B. Cyrulnik também nos chama a atenção para a ritualização dos microgestos cotidianos entre uma mesma espécie, com a função de criar códigos comuns e garantir uma certa gramaticalidade interna que permita à espécie e a seus grupos o reconhecimento, favorecendo uma atitude menos tensa frente a uma gestualidade já codificada.

Distúrbios severos que ocorram nessa ritualização, que atribui sentido pré-codificado aos microgestos cotidianos, é que acabam por gerar os quadros patológicos tratados por médicos e psiquiatras, relativos aos quadros maníacos (excesso de ritualização patológica).

No entanto, longe de importar somente aos quadros psicopatológicos, os rituais cotidianos estabelecem também uma relação muito próxima ao conceito de práticas miméticas, fundamental para os estudos da comunicação, conforme proposto por Günter Gebauer e Christoph Wulf (G. Gebauer/C. Wulf: 2004). Os autores entendem a mimese como algo "encarnado", da ordem do "sentido prático" (referindo-se a Pierre Bordieu):

... com a ajuda da mimese é desenvolvido um conhecimento prático intimamente ligado ao corpo e de grande importância para a capacidade de ação social do homem

O que deixa evidente a importância dos processos cognitivos sensório-motores e de sua relação com os processos sociabilizadores, dos quais se ocupam os estudos da Antropologia sobre rituais.

2. Rituais sociais - contribuições da Antropologia da Complexidade

São muitas as contribuições das Ciências Humanas sobre o tema dos rituais, no entanto, serão as contribuições trazidas pela Antropologia da Complexidade, pela História das Religiões e pela Teoria do Mito aquelas que nos parecerão colaborar mais diretamente com os estudos da Comunicação.

Sabemos que os primeiros sinais de consciência humana deixados pelo homo sapiens foram encontrados em sepulturas paleolíticas (E. Morin: 1988), seguidos de registros arqueológicos das pinturas das cavernas e demais inscrições, atestando que o longo desenvolvimento da consciência humana só foi possível porque ao homo sapiens uniu-se o homo demens, termo proposto por Edgar Morin para designar a natureza simbólico-cultural do homem.

A linguagem, o símbolo, os mitos que nascem como estruturas complexas imaginativas, compõem com o ritual, que define o caráter social de todo o processo, o grande diferencial humano. Esse caráter socializador que o ritual comporta já está presente na linguagem e nos códigos comuns, mas é no ritual que o caráter gregário dá indícios de sua importância central para a cultura humana.

A constituição do pensamento simbólico, origem e base de toda a linguagem humana, dá-se por meio do processo cognitivo de representação, primeiramente com a ação mágica/imagética do duplo e depois com a dimensão estética do signo (E. Morin: 1988). Mas além da dimensão cognitiva desse processo, o pensamento simbólico apresenta ainda desde suas origens dois aspectos básicos: é resultado de um processo de sociabilização, representado pela raiz "comum" presente nas palavras comunidade, comunhão e comunicação, e se estabelece e valida continuamente por meio de rituais, constituindo uma memória comum, estabelecendo um imaginário2.

Nosso interesse, no entanto, recai sobre a compreensão de como, nas sociedades contemporâneas, os rituais sociais migram para o espaço simbólico da mídia, dando origem aos rituais midiáticos, de como a mídia os codifica e condiciona, dando a esses rituais um novo caráter e dimensão, e ainda o porquê eles exercem um fascínio tão grande nas pessoas.

É na tentativa de aprofundar todas essas questões que nosso texto se aventura.

3. A criação do elemento comum - os vínculos

Sem as práticas rituais, que testemunham sobre o caráter gregário da espécie de modo a reforçar a sociabilidade, os indivíduos não se vinculariam nem fortaleceriam seus vínculos, já que estas práticas criam novos vínculos e mantêm a memória dos vínculos já existentes.

Considerando que os vínculos comunicativos alimentam-se do universo simbólico e mítico partilhado, bem como das linguagens e de suas codificações, cabe ao ritual ser o ato de alimentar-se, o acontecimento da refeição partilhada desses alimentos. O ritual confirma, re-atualiza e reforça o caráter social e partilhado dos códigos culturais.

Por isso as práticas rituais são tão fundamentais nas relações comunicativas, em especial nos momentos de estranhamento e transição, momentos nos quais os vínculos precisam ser criados e/ou reforçados ou o grupo estará sob ameaça.

Temos como exemplo de práticas comunicativas o caso dos cerimoniais, na esfera das relações públicas, nos quais há tensões geradas pelas relações políticas em ação e pelo desconhecimento e estranhamento do confronto entre diferentes culturas, por isso as práticas rituais comparecem com sua gramática, evitando improvisos e rebaixando o nível da tensão, tornando com isso a convivência possível dentro de uma certa previsibilidade, gerando vínculos que duram enquanto dura o ritual, dentro do pacto social estabelecido; vínculos que, ainda que efêmeros, tornam possível o encontro de diferentes.

Também nos momentos de transição (políticas, sociais, psicológicas) as práticas rituais garantem o fortalecimento dos vínculos e a coesão mínima do grupo quando as instabilidades geradas pela transformação em curso atingem pontos tão extremos que podem levar, por um lado, ao desconhecimento entre os componentes do grupo social, e por outro lado, a uma tensão extrema frente ao desconhecido do novo estado que se apresenta. Temos então os ritos de passagem, com sua complexa gramática3, que busca reorganizar o homem frente à desordem quase total do momento.

Não escolhemos os dois exemplos acima por acaso, na realidade consideramos que, em nossas sociedades contemporâneas, multiculturais em sua essência, os indivíduos enfrentam continuamente, de forma mais sutil que nos cerimoniais, mas não menos contundente, as tensões do desconhecimento e do confronto entre diferentes culturas. Também consideramos que esses mesmos indivíduos estão todo o tempo em permanente transição, frente à velocidade vertiginosa e à transitoriedade dos valores do mundo contemporâneo, numa constante transformação, numa "metamorfose ambulante"4, num interminável rito de passagem.

4. O fascínio do espaço midiático e de seus rituais

A pós-modernidade vê consagrar-se no Ocidente uma nova ordem que põe fim ao sentimento de se pertencer a uma comunidade de origem, favorecendo apenas as "comunidades de ocasião... construídas em torno de eventos, ídolos, pânicos ou modas", como afirma Z. Bauman (2004: 51), comunidades essas marcadas pela mesmice de "ambientes uniformes", formadas por demandas narcísicas.

A esse sentimento de não-pertença, a esse não-vínculo do homem com seu grupo, soma-se o não-vínculo do homem com o seu território, relação até então fundante em nossas culturas de origem, excetuando-se alguns casos, não por acaso no Oriente Médio, em sua maioria. O homem se transforma em neo-nômade; os economicamente favorecidos em seus aviões, e todos os demais na peregrinação por emprego e moradia. Esse é um dos traços do que Bauman chama de "modernidade líquida", na qual "a obstinada permanência da transitoriedade pode se tornar o habitat comum dos moradores de nosso planeta global e globalizado" (Z. Bauman: 2004: 174).

Como fica então a criação de vínculos se não temos mais sequer uma comunidade constante? para que fazer um enorme esforço afetivo para gerar vínculos com o grupo ou com alguém se estamos todos de passagem para lugar nenhum? e possivelmente nem sigamos juntos?

Essas são questões que a contemporaneidade nos coloca sobre a dinâmica dos vínculos sociais, tão fundamentais para os estudos da Comunicação. E são por essas e por outras razões que, com o estado de desconexão deixado pelo enfraquecimento dos vínculos, nunca outra época "esclarecida" foi tão propícia às intolerâncias e ao ressurgimento dos sistemas totalitários e nunca os rituais sociais estiveram tão enfraquecidos. A ponto mesmo do apelo de grupos fundamentalistas, sejam eles políticos ou religiosos, exercerem um crescente fascínio inclusive nas novas gerações, que buscam num sistema fechado e secular as experiências da pertencência ao grupo e da permanência, raras nas sociedades atuais.

Mas além do fundamentalismo político e religioso, algo mais prospera: a esfera midiática e seus rituais5.

Também não é à toa que os rituais midiáticos se fortalecem enquanto os rituais sociais se rarefazem, considerando-se a crescente evasão do espaço urbano, que sinaliza o fim do encanto de ir às ruas. O espaço físico dos centros urbanos, em especial o das cidades superpopulosas6, são abandonados em prol dos sedutores redutos virtuais oferecidos pelas novas tecnologias da comunicação. Efetivamente assiste-se já há algum tempo ao desenvestimento da afetividade e do interesse do cidadão urbano pelo espaço público em prol dos paraísos artificiais tecnologicamente criados no espaço privado da sua casa-fortaleza.

Os centros urbanos não favorecem as comunicações interpessoais, na medida em que nos retém numa atitude superficial assim colocada por Bauman:

(os centros urbanos são) lugares em que estamos fadados a vaguear numa 'grande multidão de estranhos diversos em contínua mudança', tendemos a 'nos tornar superfícies para os outros - pela simples razão de que essa é a única coisa que uma pessoa pode notar no espaço urbano com grande quantidade de estranhos'. O que vemos 'na superfície' é a única medida disponível para avaliar um estranho. (Z. Bauman: 2003: 131-132)

Acostumados que estamos a ficarmos nas superfícies, que é exatamente o que oferecem as imagens da mídia, como afirma Norval Baitello Júnior, fazemos das telas da mídia uma extensão de nossa casa, de nosso lugar-superfície no qual as comunicações (e os vínculos) não se aprofundam.

Essa carência de aprofundamento faz parte do fenômeno da "crise do sentido", já que o sentido é sempre um processo de irrupção do sagrado, como afirma M. Eliade (O sagrado e o profano), idéia essa retomada depois por Vilém Flusser (Da religiosidade).

O "centro do mundo", que era o centro da cidade, a praça, o marco zero, o espaço de convergência social, resíduo mítico do espaço sagrado das culturas primitivas (cf. M. Eliade), é transportado, por meio de uma operação simbólica social, para a mídia terciária e seu não-espaço.

Hoje, ao invés de reunirmo-nos ao redor das fogueiras, dos xamãs, dos totens, dos centros religiosos, procuramos estabelecer conexões com o mundo frente às telas de televisão, de computador, de celular. Nossa atenção converge para o buraco negro das telas da mídia, e em torno delas tramamos nossas teias imaginárias de sociabilização.

A mídia é o novo "centro do mundo", exercendo o poder totêmico em torno do qual a sociedade busca se agregar. Tudo para lá converge e ela nos devora com seus mil olhos eletrificados.

Esse processo de transferência, que merece ser melhor situado, é em realidade parte do processo de dessacralização do mundo, conforme já apresentamos em estudo anterior7.

Por outro lado, temos de considerar que o ser humano sempre buscou formas de evasão da realidade, seja através dos rituais religiosos ou das práticas de estados alterados da consciência, no qual se buscava a ampliação da consciência e formas de transcendência das condições concretas da vida .

Essa busca pela fuga das condições imediatas da vida, por alguma coisa além do aqui e agora, vai motivar a busca por formas de mediação entre o mundo do além-consciência vigil. Nesse processo, as próprias formas de mediação se apresentam como caminhos que levam a esse estado alterado da consciência, num desejo de que os meios se transformem em anjos8 e nos arrebatem das limitações concretas da realidade. E para que a experiência da evasão se efetive qualquer limitação espaço-temporal, como um corpo, por exemplo, é sentida como indesejável.

A procura pela experiência dos estados alterados da consciência foi historicamente perdendo seu caráter religioso e migrando para a vida cotidiana, como resultado de um processo de dessacralização do mundo e de valorização da cotidianidade, num movimento pelo qual, segundo V. Flusser, o mundo deixa de ter o assombro da natureza que se transforma em matéria-prima, na banalidade dos objetos industriais9. Foi assim que, por exemplo, o indivíduo buscou a evasão das pressões do meio social (que constantemente o impõe a civilizar todos os seus instintos primitivos), por meio das drogas e do movimento psicodélico da década de 70, quando jovens se reuniam para, juntos, consumirem as drogas psicodélicas, tentando reproduzir, dentro do contexto industrial e desencantado do mundo, algo que se parecesse com as viagens xamânicas.

Essa evasão da realidade, hoje, após a popularização da tecnologia da comunicação da década de 90, via computadores pessoais e celulares, assume o caráter de uma tecno-evasão, e grupos de pessoas, especialmente os adolescentes, reúnem-se para buscar por outros que não estão presentes por meio de infinitas e intermináveis ligações em seus telefones celulares, ou ainda fotografando-se mutuamente, enquanto todos fazem poses10 e praticamente ignoram quem está ao lado.
No entanto, a angústia aumenta na medida em que essas tentativas não alcançam nem de longe a eficácia dos rituais religiosos, deixando sempre um gosto amargo de fracasso e gerando com isso um déficit emocional e psicológico que nunca se resolve, raiz dos mecanismos de viciação e compulsão, tão bem vindos à sociedade industrial e à sua política de consumo. E não alcançam a eficácia dos rituais religiosos exatamente porque quebram com o princípio básico do ritual: a fusão mística, a experiência de comunhão do indivíduo com o grupo e com seus deuses (sejam eles deuses da natureza ou tribais11), uma experiência feita em tempo presente, que inclui a participação física e toda a sua muscularidade.

Ao perder-se o caráter gregário e vinculador do ritual, perde-se a possibilidade de transcendência que ele abriga, e em seu lugar entram os espetáculos e os rituais de consumo e auto-consumo da vida cotidiana12, dentre os quais os da mídia.
No entanto, a ânsia humana por formas de evasão e a necessidade de agregação e vinculação social são motivações suficientemente fortes e inconscientes para que se recorra à mídia em busca de alguns elementos descolados do ritual que ela apresenta, descontextualizados, mas suficientemente reconhecíveis para continuarem a exercer seu fascínio.

5. Mídia e ritual

Para melhor compreendermos quais são esses traços rituais com os quais a mídia opera, propomo-nos a apresentar alguns dos elementos comuns apresentados pelos rituais. Não é nossa pretensão propor uma análise estrutural, nem classificação de nenhuma espécie, mas sim ressaltar que o ritual apresenta claramente, desde as culturas primitivas até hoje, alguns traços comuns, além da já referida relação com os processos de vinculação e sociabilidade.

1.1. Previsibilidade e apaziguamento

Os rituais apaziguam a ansiedade humana, fruto da desordem do caráter demens e da tensão gerada pela dissociação básica da psique13 (realidade objetiva e realidade subjetiva), e o fazem porque criam previsibilidade, confirmando o já esperado, e com isso conferindo uma espécie de sensação de controle simbólico do homem sobre o mundo; além de gerar uma sensação aumentada de poder quando algo que se previu realmente acontece, o que resulta em enorme prazer para o ego.

Essa previsibilidade também se dá por meio de ritmos pontuadores, presentes sempre nos rituais primitivos por meio da música, dos cantos, das danças. Essa marcação rítmica funciona como uma forma de controle da ansiedade, e ocorre também por meio da repetição de elementos centrais do ritual (o que fica evidente no caso dos cerimoniais) que são sempre reconhecidos pelo indivíduo e pelo grupo.

É preciso lembrar também que a repetição ainda hoje carrega a memória de seu significado primitivo: repetir é também remeter-se à criação mítica periódica do mundo, conforme nos apresenta Mircea Eliade sobre o papel da repetição (e sobre o mito do eterno retorno).

A mídia se apropria desse traço de sacralidade do mito presente na repetição por meio do estabelecimento das agendas, dos calendários, das periodicidades nas publicações, da grade horária previsível das programações televisivas. E essas práticas estabelecem ritmos que pautam a vida social contemporânea, possibilitando a sincronização do grupo14, especialmente no que tange à esfera da informação pública, o que nos remete diretamente às práticas jornalísticas, mas também à programação midiática que se dedica ao lazer e ao entretenimento.

1.2. Ação organizadora

O ritual tem por objetivo estabelecer um padrão de organização, estabelecendo hierarquias entre os elementos que o compõem, e, no caso dos grupos, valores consensuais. Esse padrão funciona como elemento organizador tanto para o indivíduo (fator psicológico), quanto para o grupo.

Por conta disso o ritual possui uma forte gramaticalidade, reforçando tanto os aspectos de coerência como de coesão entre os elementos que o compõem. Criam com isso seqüências temporais (presença de narratividade), hierarquias, regras, interditos e obrigações.

Essa organização é ainda apresentada pela clara delimitação espaço-temporal que ele apresenta, literal ou simbólica. Quando o traço temporal é reforçado há o estabelecimento de ritmos, como já falado anteriormente, e quando o traço espacial é que está em jogo, temos a criação de espaços valorados de maneira distinta, considerados especiais, sacralizados pela mídia. Esse é o caso da sessão de cinema, mas também das programações especiais da televisão, dos canais pagos da tv a cabo, dos cadernos especiais dos jornais. Sabemos que eles apresentam algo "diferente", preparamo-nos para adentrar nos espaços sagrados da mídia.

Podemos também identificar esse traço tanto nas diagramações e composições da mídia impressa, quanto na narratividade das telenovelas, dos filmes, dos textos jornalísticos, de modo que, ao acompanhar uma notícia ou uma cena de telenovela, organizamo-nos por meio dos padrões de organização nelas presentes.

1.3. Papel legitimador

O ritual é originalmente re-memoração dos conteúdos míticos fundantes de uma cultura, e por isso seu conteúdo é simbolicamente significativo. Disso advém que o ritual seja legítimo e que legitime o conteúdo que por meio dele se apresenta, preservando a memória de conteúdos e valores fundamentais para o grupo (cf. M. Eliade). Disto podemos apreender que os conteúdos apresentados por meio do ritual são significativos para a grupo social. Apesar de que muitas vezes isso não se demonstre verdadeiro para as sociedades contemporâneas, era verdadeiro para as sociedades primitivas que tinham nele o acontecimento que rememorava e atualizava seus mitos. Este processo explica a sua eficácia ainda hoje nos processos de legitimação de valores sociais e demais conteúdos simbólicos que se queira reforçar, já que lei implica sempre em regularidade. E mesmo que racionalmente se saiba que não é prudente levar os conteúdos da mídia tão a sério, a ritualização acaba por impingir a esses conteúdos uma aura mágica de credibilidade.

Atualmente, a mídia opera com esse processo de legitimação social tanto por meio da adesão da audiência à sua programação, o que confere uma validação do grupo sobre o conteúdo da programação, quanto por meio da ampla divulgação que dá a festas de premiações tipo Oscar; a ritos de passagem para um novo status, típicos dos novos programas do gênero "transforme-se", tal como o "Extreme Makeover", do canal SONY; a aceitação formal do grupo a respeito de um valor específico conferido a alguém ou a algum objeto específico, como em vernissages, exposições, eventos de moda; e a punições, tais quais as práticas de ridicularização, por exemplo, como se vê tão freqüentemente em alguns programas jornalísticos no formato policial que no Brasil fazem tanto sucesso há mais de uma década.

1.4. Criação de "valor mágico" e o poder do mediador

A legitimação possível por meio do ritual possibilita ao grupo a criação de "valor mágico". Este é um processo no qual por meio da validez social do símbolo, ou seja, pelo consentimento do grupo, outorga-se especial poder a um objeto, que passa a ser tratado de forma especial, considerado sagrado. É o caso das relíquias religiosas, das vestimentas rituais, dos aparatos rituais em geral, das palavras mágicas, objetos normalmente apenas manuseados pelo xamã ou líder religioso, mediadores entre os deuses e os homens.

Há em todo ritual um líder, portador do objeto mágico, que representa o grupo na mediação entre duas partes, o profano e o sagrado, no caso das culturas primitivas, tanto como no caso das sociedades contemporâneas. É o caso dos líderes religiosos, portadores das escrituras sagradas, que cuidam dos desígnios dos deuses, na esfera do sagrado, e dos advogados e juristas, portadores dos códigos penais, que cuidam dos desígnios da lei, na esfera do profano.

Mas esses mediadores, que sempre tiveram poderes e privilégios especiais, são também os agentes da mídia. A televisão e o jornal proferem palavras mágicas, das quais o cidadão comum não ousa duvidar, e as peças publicitárias apresentam os novos objetos mágicos da estação. E, é claro, não esqueçamos do Anel do Poder do merchandising.

No entanto, precisamos lembrar que essas práticas contemporâneas da mídia, muitas vezes o principal agente de sincronização social em ação, estão longe de resgatar a complexidade e a riqueza simbólica do ritual.

Com a perda da presença, perde-se o ritual, e o que temos é a transformação do ritual em espetáculo. Pode-se participar da criação do mundo por meio do ritual, por meio do espetáculo, só é possível consumir um mundo que alguém está vendendo. E o que a mídia está vendendo são pálidas releituras do encantamento perdido.

As práticas midiáticas resgatam traços rituais sem no entanto se dar conta de que o ritual está a serviço do mito, ou seja, que o ritual rememora e re-atualiza uma visão de mundo contida no mito, seus valores, e, especialmente, seu potencial simbólico reintegrador, sua capacidade de, no momento em que faz irromper o sentido, promover a integração do grupo em torno dessa experiência de irrupção. Sem isso, tenta-se em vão alcançar a experiência do sentido (que reside no assombro frente ao sagrado cf. V. Flusser), perdendo-se de vista o projeto humano.

Frente a esses cenários, juntamo-nos à esperança de Edgar Morin, que ao propor o princípio hologramático15 como um dos princípios da complexidade, crê que o homem possa, por sua própria conta e capacidade de superação, resgatar na parte mutilada a complexidade do todo reintegrador.

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Notas

1 Doctora en Semiótica. Profesora de la Universidade Paulista e Universidade Presbiteriana Mackenzie.

2 Entendemos o conceito de imaginário cultural como o repertório de imagens de uma cultura cuja memória é cumulativa.

3 Ver Ritos de Passagem, de Van Gennep.

4 Referência à canção brasileira gravada por Raul Seixas, sucesso que, há várias gerações, não sai de moda no Brasil.

5 Sobre o fundamentalismo na mídia, e em especial no Jornalismo, que aponta para a literalização, a incapacidade simbólica e a paranóia presentes nos meios, ver texto da autora no livro Jornalismo e Realidade.

6 A estimativa dos geógrafos é que em poucas décadas todas as cidades se caracterizem pela superpopulação, fenômeno que já é realidade em grandes centros urbanos e industriais há quase um século. O caráter inamigável do espaço público é uma dura realidade em cidades como São Paulo, por exemplo.

7 O que entende-se por processo de dessacralização do mundo é apresentado pela autora no texto "A dessacralização do mundo e a sacralização da mídia: consumo imaginário televisual, mecanismos projetivos e a busca da experiência comum', apresentado no 2o. Encontro Internacional de Semiótica da Cultura e da Mídia, em outubro de 2004, em São Paulo (livro no prelo).

8 Essa relação entre anjos e meios é belamente apresentada por Michel Serres, em A lenda dos anjos.

9 Sobre isso, ver Da religiosidade, de V. Flusser.

10 Aqui vale lembrar que o retrato traz em si sempre uma referência à morte. Um retrato é sempre um retrato de morto, como afirma Roland Barthes no livro A câmara clara.

11 Conforme coloca Joseph Campbell, no livro Isto és tu.

12 Esse processo de auto-consumo é apresentado por E. Morin, em O Método 5

13 Sobre a dissociação básica da psique, ver de Carl Gustav Jung o livro A natureza da psique

14 Sobre isso ler o artigo "O animal que parou os relógios", de Norval Baitello Júnior, em livro do mesmo nome.

15 Esse princípio é assim apresentado por E. Morin: "O terceiro princípio (da complexidade) é o princípio hologramático. Num holograma físico, o ponto mais pequeno da imagem do holograma contém a quase-totalidade da informação do objeto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O princípio hologramático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico... É um pouco a idéia formulada por Pascal: 'Não posso conceber o todo sem conceber as partes e não posso conceber as partes sem conceber o todo'." (E. Morin: 1995: 109)


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