Revista F@ro Nº2

A interação social de pesquisadores brasileiros no ciberespaço
e a formação de uma comunidade virtual

Cynthia Harumy Watanabe Corrêa
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Resumo: A interação social de acadêmicos e pesquisadores reunidos na lista de discussão sobre Gestão da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH-Gestão) foi analisada visando identificar a formação de uma comunidade virtual. A lista foi observada através do método netnográfico no período de janeiro a junho de 2004, sendo que o material empírico de análise se concentrou no mês de abril. Como resultado, foi constatado que a lista ABRH-Gestão promove a constituição de uma comunidade virtual de caráter científico motivada pela existência de afinidades e interesses comuns em torno do tópico recursos hídricos. Dessa forma, a lista consegue se manter em plena efervescência há mais de cinco anos por pessoas geograficamente dispersas e que atuam em diferentes atividades profissionais, convivendo em meio a diálogos e debates em uma comunidade virtual imaginada.

Palavras chave: Interação Social. Comunidade científica brasileira. Comunidade virtual. Netnografia

Introdução

A pesquisa aborda a comunicação no estado de virtualização da vida, isto é, inserida no contexto da sociedade da informação, que é caracterizada pela apropriação das Tecnologias de Informação e de Comunicação (TICs) no cotidiano das pessoas. De um modo geral, a utilização crescente da Internet resultou em um rearranjo da organização social, possibilitando o contato social via redes de computadores de alcance mundial, marcando o predomínio de uma cibercultura (Lemos, 2002b).
Entre as diversas formas de relacionamentos sociais originados no ciberespaço, estão as comunidades virtuais (Rheingold, 1998; Lemos, 2002b; Jones, 1997) constituídas a partir da identificação de afinidades e de interesses comuns, pessoais e profissionais, sendo que um único indivíduo pode fazer parte de quantas comunidades desejar. Nesse cenário, destaca-se o aparecimento de grupos voltados para a área acadêmica e de pesquisa, que foram inicialmente beneficiados com o uso da própria Internet quando a rede dava os primeiros passos por volta de 1969 e recebia o nome de Advanced Research and Projects Agency (ARPANET). Além disso, na era da informação, era do conhecimento ou da sociedade em rede (Castells, 1999, 2003), a informação é vista como objeto mais valioso.

Diante desse contexto, investigou-se o processo de interação social entre os participantes de uma lista de discussão sobre Gestão de recursos hídricos, vinculada à Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH-Gestão), com o objetivo de identificar a formação de uma comunidade virtual. Entre os objetivos específicos destacaram-se: observar a interação social entre os membros da lista; identificar características de uma comunidade virtual; verificar os processos de cooperação e de compartilhamento de saberes na lista; e examinar o papel do moderador na lista de discussão.

A escolha da ABRH-Gestão deve-se ao tema recursos hídricos ser alvo de debates sobre a conservação dos ecossistemas de água doce para atender às demandas da sociedade em nível global. No caso brasileiro, o assunto se destaca porque o país concentra a maior quantidade de água doce do planeta. O Brasil detém ainda a maior área úmida continental do mundo (Pantanal), as mais extensas florestas alagadas (Amazônia) e uma fauna aquática rica. Outro aspecto relevante para a seleção desta lista é o seu vínculo a uma associação científica, o que garante a confiabilidade e a seriedade da discussão e, ao mesmo tempo, colabora para caracterizar o fazer ciência como uma prática institucionalizada.

A ABRH-Gestão utiliza o suporte do sistema Yahoo! Brasil Grupos e está aberta a qualquer pessoa interessada na temática, ou seja, a participação não é restrita aos sócios oficiais da ABRH, que somavam 914 na época de realização da pesquisa, em junho de 2004.

A cibercultura científica

O envolvimento do mundo da ciência com a cibercultura vem de longa data. Segundo Meadows (1999), o computador já era empregado no processamento de informações na década de 1960 e sua evolução o transformaria em ferramenta cada vez mais eficaz para a comunicação científica. Além disso, a iniciativa de promover a comunicação também está de acordo com uma das características principais da filosofia do método científico: dar publicidade a experimentos e achados de pesquisadores; permitindo a ampla troca de informações entre os pares para acelerar o avanço da ciência. Nesse sentido, Meadows (1999) afirma que a comunicação está situada no próprio coração da ciência. Existe uma necessidade intrínseca por parte do cientista de manter um intercâmbio, de trocar informações com os pares para dar continuidade a projetos de pesquisa.

Um estudo realizado por Costa (2000) sobre a utilização das redes de computadores por economistas e sociólogos brasileiros e ingleses indicou que a facilidade em contatar colegas via redes eletrônicas globais tornou a interação nesse nível mais real. Houve um aumento na produção de pesquisas em parceria e na publicação de trabalhos em co-autoria com pessoas geograficamente distantes e que, em muitos casos, jamais se encontram. Assim, um dos principais impactos do uso de computadores e redes eletrônicas no grupo observado foi a ampliação da dinâmica nas interações com os pares - interações sociais - e com os recursos de informação.

Desse ponto de vista, a Internet aproxima o mundo científico à medida que pode colaborar para diminuir as disparidades de acesso aos resultados de pesquisas divulgados a todo instante em vários países, agilizando e otimizando o trabalho de profissionais que atuam em regiões concebidas como periferias em se tratando de iniciativa científica. A comunicação via redes de computação ignora significativamente a barreira espacial e temporal que tanto tornava lenta a circulação de informações sobre ciência. Outro fator de destaque é a capacidade de armazenamento de dados que está disponível em formato digital, podendo abranger arquivos contendo texto, imagem e som.

Um livro contém uma quantidade limitada de informação que só pode ser extraída por um número limitado de maneiras. A informação eletrônica equivalente pode ser ligada a uma quantidade virtualmente ilimitada de informação adicional, a qual o usuário pode ter acesso de várias maneiras, de acordo com o seu desejo. Assim, ser "alfabetizado em computador" implica maior leque de atividades do que é necessário para ser alfabetizado. (Meadows, 2000: p. 25).

Com base na citação anterior, considera-se a comunidade científica, principalmente no caso brasileiro, um dos grupos mais representativos da sociedade da informação. Trata-se de um grupo que apresenta competência educacional para selecionar informações de qualidade na Internet e para manusear adequadamente as diferentes possibilidades oferecidas por esta rede que, enquanto meio de comunicação, pode proporcionar uma maior integração, cooperação e troca de conhecimento e experiência entre os internautas. Logo, a utilização crescente das ferramentas de comunicação da Internet pela comunidade científica brasileira permite a consolidação de uma cibercultura científica no Brasil, caracterizada pela apropriação das tecnologias na prática de ensino e pesquisa de estudantes, professores, cientistas e pesquisadores espalhados no país. Dessa forma, o ciberespaço configura-se como um ambiente para ser explorado e usufruído:

A virtualização não seria a morte do mundo, mas o devir-outro do humano. [...] o virtual tem muito pouco a ver com o falso ou com o ilusório. Toda a cibercultura está imersa no processo de desterritorialização/virtualização, principalmente com a valorização da informação e do conhecimento. (Lemos, 2002b: p. 193).

Segundo o autor, a cibercultura nasce a partir da apropriação da tecnologia e ainda é favorável a novas formas de uso social de objetos tecnológicos, diferentemente da atmosfera eletro-mecânica do começo do século XX.

A formação de comunidades virtuais

As primeiras comunidades virtuais foram criadas via redes de computadores que surgiram nos Estados Unidos antes mesmo da consolidação da Internet, por volta dos anos 70. É o caso da rede Usenet, considerada uma das formas eletrônicas mais populares de organização social nas redes. O conceito de comunidades virtuais foi cunhado por Rheingold (1998) como "[...] agregações sociais que emergem na Internet quando uma quantidade significativa de pessoas promove discussões públicas em um período de tempo suficiente, com emoções suficientes, para formar teias de relações pessoais no ciberespaço". Lemos (2002a), por sua vez, contribui com o debate ao afirmar que nem toda forma agregadora da Internet pode receber o rótulo de comunitária, pois existem certos agrupamentos sociais em que os participantes não mantêm qualquer vínculo afetivo e/ou temporal.

De qualquer maneira, o ciberespaço potencializa o surgimento de comunidades virtuais e de agregações eletrônicas delineadas em torno de interesses comuns, de traços de identificação, pois é capaz de aproximar, de conectar indivíduos que talvez nunca tivessem oportunidade de se encontrar pessoalmente. Ambiente que ignora definitivamente a noção de tempo e espaço como barreiras.

Na formação de comunidades no ciberespaço, prevalece ainda a noção clássica que define toda comunidade, a qual está ligada à idéia de um espaço de partilha, a uma sensação, a um sentimento de pertencimento, de inter-relacionamento íntimo a determinado agrupamento social (Lemos, 2002b). É o interesse em comum partilhado que transmite à comunidade o sentimento de pertencimento. Desse ponto de vista, Silva (2003) argumenta que apesar do laço social servir de cimento à vida em sociedade, ele só se atualiza pela força de valores partilhados, de imagens reverenciadas em conjunto e de sentimentos e afetos intensificados pela comunhão. Em outras palavras, não há laço social sem imaginário.

No interior das comunidades virtuais, podem existir elementos como emoção, solidariedade, conflito, imaginação coletiva, comunhão. Também são adotadas regras de conduta denominadas de Netiqueta, havendo punição para os que desobedecerem aos valores do grupo. Para que o sentimento de comunhão se propague, é necessário que haja compartilhamento de saberes, de conhecimento, de opiniões que podem até ser contraditórias e conflitantes, pois é uma forma saudável de verificar o grau de tolerância entre os membros. Ademais, a existência de idéias conflitantes pode resultar na elaboração de novos saberes a partir de debates e discussões.

Na comunidade virtual, o indivíduo elege qual comunidade quer fazer parte, sendo a principal motivação o seu interesse particular em um ou mais assuntos em que percebe uma identificação e encontra pessoas para compartilhar idéias e promover discussões. Assim, é basicamente a chance de escolher traços de identificação que diferencia a formação de comunidades virtuais do modelo tradicional de atribuição de identidades culturais, como a identidade nacional, em que todo um povo era e ainda é obrigado a aderir a símbolos nacionais, como hino e bandeira, e a manter vínculos a lugares, datas comemorativas e a tradições específicas.

Nesse sentido, Hall (2001) afirma que em decorrência do fenômeno de globalização ocorre um afrouxamento de fortes identificações com a cultura nacional e, ao mesmo tempo, são reforçados outros laços e lealdades culturais diferentes do nível do Estado-nação. Além disso, a partir da concepção de Anderson (1989: p. 14), compreende-se o conceito de nação definido como:

[...] comunidade política imaginada - e imaginada como implicitamente limitada e soberana. Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão.

Para esse autor, todas as comunidades maiores que as primitivas aldeias de contato face a face ou até mesmo estas sempre foram imaginadas. A nação é imaginada como comunidade porque, ao ignorar a desigualdade e exploração que prevalecem no interior de grupos sociais de origem comunitária, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal. Desse modo, pode-se entender a identidade também como algo formado, ao longo do tempo, e não como algo que nos acompanha desde o nascimento. Existe, então, sempre algo imaginado ou fantasiado sobre sua unidade (Hall, 2001).

De fato, os conceitos de identidade cultural e de nação funcionam como recursos que visam manter o controle e reprimir as diferenças sociais, culturais, educacionais, econômicas e políticas de uma população. Há uma tentativa de padronização e homogeneização de um povo, disseminando uma idéia de união e de coesão que ignora qualquer forma de diferença e que, portanto, não representa o cotidiano das pessoas que vivem sob o mesmo território. Ao reconhecer que a identidade é uma construção, que está constantemente sendo elaborada, Hall (2001: p. 39) sugere que se fale de "identificação":

A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.

Esse movimento contínuo de elaboração de identidade a partir da identificação e do reconhecimento do indivíduo pelo imaginário dos outros também se manifesta no processo de constituição de comunidades virtuais, quando o indivíduo busca se aproximar de pessoas que tenham interesses semelhantes independentemente do tempo, do espaço e da localização geográfica. Dessa maneira, acredita-se que a formação de comunidades virtuais, entendidas enquanto comunidades imaginadas (Anderson, 1989) e constituídas por sentimentos como afeto, vem ajudando a suprir esta necessidade de identificação.

A construção do imaginário individual se dá, essencialmente, por identificação (reconhecimento de si no outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e distorção (reelaboração do outro para si). O imaginário social estrutura-se principalmente por contágio: aceitação do modelo do outro (lógica tribal), disseminação (igualdade na diferença) e imitação (distinção do todo por difusão de uma parte). (Silva, 2003: p. 13).

A novidade é que o indivíduo não é obrigado a integrar determinada comunidade, a motivação é pessoal, eletiva e espontânea. Os relacionamentos sociais originados em redes de computadores são desenvolvidos no ciberespaço, que pode ser compreendido como um lugar de circulação de informação, um espaço de comunicação, espaço virtual, que não existe em oposição ao real (Lemos, 2002b).

Um outro fator que diferencia as comunidades virtuais das comunidades tradicionais é a ausência de um território, de uma localização geográfica. A existência de uma base territorial fixa não é mais necessária, embora o ciberespaço apresente-se como um espaço público fundamental para a existência de comunidades virtuais, um território simbólico. De acordo com Lemos (2002b), a noção de territorialidade não é física nas agregações eletrônicas. O constrangimento geográfico não é determinante para a formação comunitária, embora algumas comunidades não eletrônicas sejam também comunidades sem territorialidade física, como a própria comunidade acadêmica.

Ainda sobre a questão da existência de um território, Jones (1997) fala de virtual settlement ou estabelecimento virtual, que pode ser definido como um ciberlugar delineado simbolicamente em torno de um tópico de interesse e com uma proporção significativa de inter-relação interativa que caracteriza os grupos formados via Comunicação Mediada por Computador (CMC). Segundo Jones (1997), a consolidação de uma comunidade virtual, estruturada em um estabelecimento no ciberespaço, implica a presença das seguintes condições: um nível mínimo de interatividade; uma variedade de comunicadores; um número mínimo de membros fixos para dar suporte aos debates; e um espaço virtual público e comum onde ocorra uma parcela significativa de interação via CMC.

Outro aspecto relevante para a formação de comunidades virtuais é o fator permanência temporal, de modo que os integrantes sintam-se realmente parte de um agrupamento de tipo comunitário (Lemos, 2002a), ou seja, possam criar um laço social permanente e contínuo.

O ciberespaço é, dessa forma, uma entidade real, parte vital da cibercultura planetária que está se desenvolvendo diante de todos. Ele não pode ser visto como algo desconectado da realidade, mas sim como um complexificador do real, uma vez que toda a economia, a cultura, o saber, a política do século XXI, enfim, todas as esferas que estruturam a sociedade estão passando por um processo de negociação, distorção e apropriação a partir da nova dimensão espaço-temporal de comunicação e informação planetárias que é o ciberespaço (Lemos, 2002b).

Metodologia do estudo

Realizou-se um estudo de caso baseado no método netnográfico visando identificar o grupo reunido na lista ABRH-Gestão como uma comunidade virtual. A netnografia é uma adaptação da etnografia para o ambiente virtual, usando técnicas e tradições da antropologia cultural (Kozinets, 1998; Sá, 2002).

Para a realização do trabalho de campo na Internet, houve a inserção do pesquisador no espaço virtual para investigar as práticas culturais do grupo que interagia de forma on-line, ou seja, usando uma linguagem específica baseada em códigos e sinais, na escrita de palavras com letras maiúsculas ou minúsculas e com uma pontuação diferenciada (Kozinets, 1998). A coleta de dados consistiu no download das mensagens transmitidas na lista de discussão, com o conhecimento do moderador da lista.

A análise do processo de interação social da lista ABRH-Gestão foi realizada através da observação participante durante um período de seis meses, de janeiro a junho de 2004. O material empírico de análise se concentrou no mês de abril em decorrência do nível significativo de debates apresentados. Por razões éticas, optou-se pela não identificação nominal dos participantes da lista e, neste caso, as mensagens e seus respectivos autores foram identificados por números. A utilização da palavra mensagem pela sua forma abreviada (Msg.) é outra convenção adotada neste trabalho.

A interação social na lista ABRH-GESTÃO

A partir da análise netnográfica da interação social na ABRH-Gestão, verifica-se que a lista apresenta todos os elementos necessários para ser definida como uma comunidade virtual (Rheingold, 1998; Lemos, 2002b; Jones, 1997), na medida em que permanece em atividade há mais de cinco anos e contava com a participação de cerca de 650 membros na época da realização deste estudo. Do total de inscritos, existe um número mínimo de pessoas, cerca de 10%, que participa ativamente divulgando informações, propondo questões e estimulando a participação dos demais. Os outros integrantes lêem as mensagens e, eventualmente, concordam ou discordam das questões, argumentos e contra-argumentos apresentados, ou seja, a pauta de debates está apoiada nas mensagens que recebem dos membros ativos.

Embora o número de participantes ativos seja relativamente baixo, é suficiente para manter a dinâmica de interação social no interior da comunidade virtual, sendo que no período investigado foi registrada uma média de 91 mensagens transmitidas por mês. De um modo geral, a lista ABRH-Gestão pode ser considerada bem sucedida, apesar de nem todo dia haver trocas de mensagens, pois, às vezes, não surge nenhuma novidade ou debate. São enviadas em média três mensagens por dia, podendo ser trocadas até 14 mensagens em um único dia em caso de discussão polêmica.

O entendimento da lista como um ambiente voltado para a promoção de diálogos e debates é expressivo por parte dos membros, que a concebem enquanto um espaço de produção de sensações do vivido de forma conjunta (Silva, 2003). É o que se verifica, por exemplo, com as passagens: "Normalmente, tenho sido um observador silencioso das discussões que acontecem na rede. Entretanto, a proposta da lista é exatamente alavancar assuntos que despertem discussões em benefício da própria atividade de gestão." (Msg. 35); "[...] gostaria de convidar o Sr. [...] para participar das discussões promovidas aqui nesse espaço democrático, quando teremos a oportunidade de aprender um pouco mais sobre a visão sociológica do processo de gestão de recursos hídricos [...]" (Msg. 48); e "A discussão e a troca de idéias é salutar e devemos saber ouvir e ter a oportunidade de falar a todos. Este é o lugar!!!" (Msg. 84). Assim, a lista de discussão é um estabelecimento virtual (JONES, 1997), um espaço virtual público e comum em que a comunicação desenvolve-se mediada por computador, servindo tanto para promover o intercâmbio de informações e de experiências como para desencadear polêmicas e conflitos.

O processo comunicacional está estruturado no envio de mensagens utilizando o correio eletrônico. Os participantes costumam disponibilizar arquivos de textos, mapas e fotos na página do grupo no Yahoo, pois não é permitida a transmissão de material em anexo no corpo da mensagem, e ainda indicam links e sites de interesse como "A documentação necessária à apresentação das propostas está disponível na Web, http://www.sg-guarani.org/particulares/ciudadania.htm" (Msg. 7); e alguns participantes sugerem à consulta de sites pessoais como "[...] ver seção HUMOR na minha página." (Msg. 52).

A adoção da linguagem corrente no ambiente virtual também aparece no contexto da lista, porém, em menor proporção, como é o caso de palavras escritas em letras maiúsculas indicando gritos e ressaltando determinada colocação como "[...] sem nenhum conhecimento das LEIS, DAS INSTITUIÇÕES, DA PRÁTICA DA VIDA, ETC...." (Msg. 52); "O tema praticamente não mudou pois continuamos buscando O DESAFIO DA PRÁTICA." (Msg. 84); e na utilização de símbolo como ": ))))." (Msg. 82), que representa o sorriso e o bom humor do autor. Essa linguagem diferenciada é uma das características centrais da cibercultura e de relações sociais estabelecidas em redes virtuais (Lemos, 2002b).

A lista tem um moderador que não desempenha um papel de censor e sua atuação, normalmente, está ligada à recepção de novos inscritos e à solução de problemas técnicos de funcionamento da ABRH-Gestão. A lista está aberta à associação de qualquer pessoa que solicitar sua inscrição e todo indivíduo cadastrado pode transmitir mensagens com o conteúdo que quiser, ou melhor, desde que esteja relacionado ao tema prioritário da lista. O compromisso existente é com o grupo, com a manutenção da interação e do debate em torno de um tópico específico - recursos hídricos.

A interação social no interior da lista desenvolve-se de forma livre e não organizada, ou seja, acontece de acordo com a participação e o interesse de cada membro, como exemplifica a Msg. 75: "Vejo que a colocação da [autora da Msg. 67] volta, um pouco no tempo, a pergunta do Amigo [autor da Msg. 31]". O conteúdo da Msg. 75 interage com as abordagens feitas anteriormente, uma vez que o autor considera necessário retomá-las no momento atual da discussão. Nota-se que os membros promovem o diálogo e o debate conforme seus interesses e como acharem conveniente, não existindo uma ordem a seguir, uma pauta definida ou dada como encerrada.

A lista ABRH-Gestão configura-se em uma comunidade virtual de caráter científico por também reunir participantes das mais diversas áreas do conhecimento e que exercem diferentes profissões - advogados, biólogos, economistas, geógrafos, engenheiros, jornalistas, geólogos, sociólogos, entre outros. São pessoas que participam da lista porque imaginam ter afinidades e estão dispostos a compartilhar informações sobre recursos hídricos, afinal, não há laço social sem imaginação (Silva, 2003). A motivação é pessoal, sendo o tema recursos hídricos o fator de atração que une a comunidade, é o elemento-chave identificador (Hall, 2001) e que transmite o sentimento de pertencimento à comunidade.

O fato de geralmente se inscrever novos participantes na ABRH-Gestão também é marcante porque são pessoas de diferentes lugares e de diversas formações e interesses acadêmicos e/ou profissionais que se associam a uma lista de discussão para tomar conhecimento e se familiarizar com o tema recursos hídricos, como ilustra a Msg. 81: "Sou ecólogo e atualmente faço pós-graduação em geociências e meio ambiente. Não trabalho diretamente com gestão de recursos hídricos, e participo desta lista recentemente como curioso do assunto e aprendiz".

O caráter comunitário da lista, que supera a noção de uma simples agregação eletrônica (LEMOS, 2002a), é percebido quando se veicula ao longo de meses a mensagem: "Nossa homenagem ao colega [ ... ], idealizador e primeiro moderador dessa lista.", homenageando o primeiro moderador pela proximidade da data de sua morte. Nesse momento, a comunidade virtual e imaginada (Anderson, 1989) lamenta junto, coletivamente, a perda de uma pessoa importante, embora nem todos os participantes o tenham conhecido. Isso é uma prova do compromisso e do respeito estabelecido entre os membros da ABRH-Gestão, mesmo conscientes que podem se retirar da lista a qualquer hora e sem constrangimento, pois cada participante decidiu integrar aquele grupo por vontade própria, tratando-se de uma atitude espontânea.

A presença do sentimento de pertencimento a um agrupamento comunitário é verificada, inclusive, pela forma de tratamento usada entre os participantes, seja na saudação inicial do grupo como "Prezados Companheiros da Lista" (Msg. 45); "Car@s" (Msg. 63); e "Prezados listeiros" (Msg. 67) ou em frases de despedida como é o caso de "Muita paz, saúde e luz!" (Msg. 4); "Com a palavra os co-listeiros" (Msg. 31); "Um fraternal abraço" (Msg. 38); e "Saudações hídricas" (Msg. 46). Estas expressões são utilizadas por membros de grupos formados virtualmente, que se vêem como integrantes de uma comunidade, pessoas que se reúnem, encontram-se e convivem socialmente por meio da rede, representando a chamada sociedade em rede, na concepção de Castells (1999, 2003).

Os participantes da lista são de diversas localizações geográficas, representando o país de Norte a Sul, assim como há também pessoas de outros países, em menor quantidade, mas que se relacionam a partir de uma comunidade virtual imaginária, já que muitos não se conhecem pessoalmente, incluindo o moderador, que não conhece a maioria dos inscritos.

Considerações finais

Com a análise da ABRH-Gestão, verifica-se que os estudantes, professores, cientistas e pesquisadores, que atuam nas mais diversas áreas do conhecimento e que estão ligados pela identificação (Hall, 2001) em torno de um tópico comum - recursos hídricos, formam uma comunidade virtual (Rheingold, 1998, Lemos, 2002a, 2002b, Jones, 1997) científica estruturada em uma lista de discussão, que é um virtual settlement ou estabelecimento virtual (Jones, 1997).

Observa-se que a interação social no interior da lista é fundamental para a construção de novos saberes através da manifestação de opiniões muitas das vezes divergentes. A ABRH-Gestão é um ciberlugar de intercâmbio coletivo de informações, de experiências e vivências, aberto a pessoas motivadas a compartilhar saberes, conhecimentos e preocupações em comum, mantendo um laço social imaginado (Silva, 2003).

A comunidade estruturada via lista de discussão é formada por pessoas de diferentes localidades geográficas, abrangendo todas as regiões do Brasil e com participantes de outros países. Nesse sentido, o ciberespaço ignora, definitivamente, aspectos de tempo e de distância espacial como limitadores do convívio social, auxiliando na formação de comunidades virtuais imaginadas (Anderson, 1989).

De outro lado, o nível elevado de interação social na lista, assim como o uso de outros recursos de comunicação on-line, como consulta a sites e a utilização da própria linguagem característica do ambiente virtual, ajudam a indicar a consolidação de uma cibercultura científica no Brasil.

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